25 de mai. de 2010

Ler Pessoa à tarde e Baudellaire à noite

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Ler Pessoa à tarde e Baudellaire à noite. Isso sim é refinamento! Não é ler para a tarde e para a noite como um louco declamante, buscando fora um satélite de alumiar dúvidas. É antes deixar-se tomar por uma volúpia que varre quartos desarrumados.
Um luxo! – dir-me-ão com navalhas no bolso – somente acessível a preguiçosos que dão tiros no trabalho. Não digo que não, mas detenho-me em perspectiva nos anos que se perdem a correr para um campus, não para desamarrar e exponenciar a qualidade do pensamento, mas para aprender grandezas racionadas e outras miudezas adequadas a um mercado de trabalho.

Não concordo com este modelo de educação que vigora no mundo ocidental como uma grande moda. O Capitalismo é perigoso porque, sendo um modelo que situa o capital no centro do seu próprio paradigma, toma a natureza (a vida) como um recurso consumível, atirando, não raras vezes, tudo o que ela representa para as suas roldanas periféricas.

O Modelo capitalista tem as suas vantagens. Julgo que o próprio Agostinho da Silva o postulou, em doses moderadas, como um caminho a percorrer para libertar o Homem do trabalho e da fome. Por outras palavras (que serão igualmente uma interpretação das suas), caberia ao Capitalismo providenciar maquinaria suficiente para trabalhar em vez do Homem, deixando-o com mais tempo livre para se cumprir como “um poeta à solta”. Sou totalmente fiel a esta ideologia que não posso precisar se era a dele - às vezes, o encanto leva-nos para paixões sem providência…

Convém não esquecer que as “Conversas Vadias” do Professor datam… vinte anos. Não creio que ele visse com bons olhos, hoje, o rumo que a sociedade tomou. No entanto, ele tinha (ainda tem) razão. Que falta nos fazem estes líderes sem ambição de poder!

Agostinho da Silva não gostava de rótulos, mas isso não impediu que muita gente lhos pusesse - não por maldade, mas por necessidade, como ter um objecto na mão e não saber em que gaveta o guardar. Correndo o risco de cometer o mesmo erro, não posso deixar de lhe reconhecer a humanidade e uma certa visão, sem horizonte para derrotismos, que lhe dava aquele ar de avozinho rijo. E é curioso ver como ele rabiscou com optimismo sobre os malefícios das ideologias a longo prazo.

Era o maior! Jogou por todos os clubes e nunca assinou por nenhum…


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24 de mai. de 2010

O Poeta

Num lugar onde o mar acaricia a areia e o sol,aquece e bronzeia os corpos dolentes,o Poeta soFre de amor sentido.Ao remar o barco para o porto do esquecimento,procura em debalde retalhar memórias,a ofertar ao tubarão, supremo- pontífice,dos amores negados e renegados...Um exército de soldados espicaçava ,como um cão raivoso,o seu coração destroçado,por um amor que parecia desvanecer...Como memorizar a dor sem voz,de uma alma dilacerada pela espada da negação sentimental ?Um naufrago dá à costa,vitima da rebentação das águas e da barbatana mortífera do tubarão,guardião dos infortúnios de amor.Uma voz, vinda de longe,desperta o corpo aparentemente sem vida,num suave entristecer da lua,das marés que vão e vêm ,ao compasso de um amor falhado...

17 de mai. de 2010

A Carroça do Poder

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A Carroça é d’ ouro e passa como um diabo a correr
Sob um foco de sol a parecer divino
Com nuvens abertas…

Eu olho para ela como um camponês que parou de trabalhar e se apoia na enxada para ver passar a banda. É bonita, de facto. Um veículo espantoso que situaria entre a Arca da Aliança e um coche ou diligência. Corre-lhe atrás um exército de peregrinos em euforia como as crianças descalças de um ermo, à passagem de um forasteiro bestial.

A Carroça é d’ ouro e não pára ou estaciona.
Os homens querem subir para ela
Como se fosse a melhor cona,
As mulheres ser levadas nela
À carona

O mundo verga-se à sua passagem e as tribos convocam os seus mais bravos guerreiros para lhe porem uma bandeira. Para trás fica uma História mal contada de glórias com muitos pés estropiados, atirados sem nome para a valeta.

O chão da História é o leito de um rio de sangue amnésico por onde a Carroça passou e conta-se às crianças como o vir de uma fábrica de armamento com operários nutridos e felizes…

A Carroça é d’ ouro como os cabelos suados de uma criança que dorme com febre. E não parece letal...
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13 de mai. de 2010

O Luto

Desceu a calçada vestida de preto...

Sobre a cabeça,um lenço de fina renda,

dá ao rosto um ar sereno e impenetrável.

Seus passos prendem um corpo lânguido

a pesadas mortalhas.

Para onde vais Maria das Dores?

-Vou soltar o grito que trago no peito,

Afogar as mágoas no leito do rio

onde desaguam as lágrimas dos que sofrem.

Vou ao encontro da bela donzela

que me espera à janela,

lá no beiral,

na outra margem do rio.

Anseio o toque das suas mãos,

o despertar de uma caricia morta,

o beijar de aguarela amorfa,

que um dia ninguém pintou.

Desceu a calçada ladeada de casas,

descalça entrou no cemitério...

Lágrimas, caixão ao centro, luto, o preto...

O pesar , cova, flores, terra, lápide,

flores, palavras, poucas...

Nasceu e morreu...

Reticências... reticencioso ritual,

preto no preto , caixão à cova selado.

Volto à pedreira abandonada

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Volto à pedreira abandonada sem cadastro nem infância. Soçobra uma perplexidade paralítica que ficou para guardar a obra no repente de se acudir a um fogo ou ir almoçar. Uma esperança solitária que não chamou por ninguém por achar que não era preciso, e se foi acomodando àquele buraco, com solicitude.

Passaram-se invernos e a pedreira virou estação de serviço para os carros da noite que chegam e vão. Os motores roncam em potência e os faróis alumiam restos de chuva na poça onde vêm beber magros diabos e puristas de gritos perfeitos.

Ah, a pedreira ecoa como um inferno silencioso onde a luxúria sibila uma cantilena que a mão dos homens não arrancou ao abandono das pedras que ficaram.
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É como se as minhas palavras ao embaterem no teu entendimento me atingessem de ricochete de um modo mais audível.
Da mesma forma as tuas palavras sentam-se em mim como num puf.
E venho para casa a escrever enquanto conduzo, com medo de me esquecer das frases mais importantes, e repito-as na minha cabeça como um menino em recado.

Ahhh!!

Caramba já me ia esquecer!!...uma coisa que vinha a repetir para mim, no caminho para cá...

...que às tantas essa necessidade de alcool, ou de forçar a melancolia, que os poetas têm, surge porque eles não querem ser "um fingidor"... que ...." finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente".
Porque sentimos e queremos deitá-lo cá para fora, mas depois começamos a dar voltas à cabeça  na procura da descrição que melhor retrate o criminoso que vimos em fuga...mas ele foge-nos da memória...ou reinventa-se...e já nem estou com paciencia para estar para aqui a escrever, e começa-se a notar vestígios de borracha por todo o texto, e estou a escrever numa posição desagradável...
... e até trepamos paredes na procura daquele verso-albúm contentor de um milhão de imagens bem ilustrativas daquilo que nós não vemos ou vimos muito bem... como quem vem de viagem e diz:

-ó pá não dá para descrever por palavras!!...tinhas que ter ido...tens que lá ir ver com os teus olhos... as fotos não demonstram o lindo que aquilo é!!".

Mas massacramo-nos na mesma, porque ao fim e ao cabo, é essa a nossa mais real dieta alimentar.
Somos como aquelas pessoas que enquanto falam, nos tocam constantemente no braço e dizem:

-" 'tás a ouvir?"..."escuta!"
(e tocam-nos outra vez...e mais outra...e outra vez...Que chato caralho!!!)

-Podes falar sem me tocar no braço? Eu estou a ouvir!!!
(...mas aí está ele de novo a tocar-nos no braço sem dar conta disso.)

Amanhã continuo porque estava a escrever numa posição muito desconfortável, a ficar sem bateria no portátil, a corrigir-me demasiado, e a começar a sentir que o poeta " finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente", e agora não tenho whisky, nem  mp3-carregado-de-músicas melancólicas na minha mesinha de cabeceira...

12 de mai. de 2010

O Grande Esfregão

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Eu sonhei que o mundo era aberto e tinha uma porta a sair de casa, com pessoas ao fundo das escadas para me abraçar. Eu corria para elas, descendo os degraus em lanços de três para me abraçar também. Íamos depois trabalhar como numa comuna alegre, descendo a rua em cantoria. Inventávamos um deus para dar graças de sermos tão felizes e não para lhe pedir coisas… um deus satisfeito que olhasse para nós como um ancião com crianças a dançar de roda…

Mas algo perturbou o meu sonho, como se me agarrassem com força pelo braço ou uma serpente tivesse assobiado no meu paraíso sonâmbulo. Impressão minha? Talvez. Resquícios de uma vida anterior que a detergência não esfregou? Não sei. Todavia, o suficiente para me perder nos cânticos, a olhar para trás… um braço amigo resgatou-me do susto e a cantoria prosseguiu, bifurcando na entrada para os campos de tomate-cereja...

Comi pouco ao jantar, inventei uma desculpa salobra para não fazer amor com a minha mulher e dormi mal. Aquela cobra perseguia-me em pensamentos e, muito antes de o sol nascer, já eu lhe tinha inventado um rosto com nome. – Diabo! – uma expressão que os nossos antepassados usavam para agregar e corporizar concentrações de energia negativa, com significado místico, quando as explicações científicas escasseavam.

- A sério? – disseram-me, - mas em que mundo é que tu vives? Desde o Grande Esfregão que não ouvia uma coisa tão ridícula! É óbvio que todas as pessoas têm uma pulsão positiva e outra negativa! Um lado animal que te consubstancia às circunstâncias de existires num corpo, e um outro virtual – provocado pela educação que recebeste. Qual é a tua dúvida?
- Não sei bem! Aquela cobra não era animal…
- Era como? Viste-a bem?
- Não. Eu não a vi, nem sequer sei se era uma cobra, mas ela pairou em mim como uma existência sobrenatural que me deixou alagado em medo, com os poros todos alerta…
- Diz-me uma coisa… tu nunca foste Filmado, pois não?
- Não… - confessei, com estio e vergonha, como se fosse virgem e tivesse contado uma estória sexual que toda a gente tivesse acreditado e aplaudido… - não, nunca fui Filmado! - reconfessei-me com um orgulho que tira as calças e se mostra amiúde, murcho...
- Eu logo vi! Mas relaxa, eu não vou contar a ninguém. Conheço um médico que grava em HD...


continua...
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10 de mai. de 2010

Profissão: - Desterrado com part-time

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E não é que ela me arrancou da cama quase às três da manhã! Caprichos de grávida sem um desejo em concreto. Pergunto-lhe se quer comer, se quer alguma coisa em especial… queres que vá buscar fora? – Que não, que só quer ver-me cozinhar…

Não é fácil viver com a poesia!

Não somos propriamente uma família de talentos. Ela é o que é, como as palavras são o que são, e não se pode dizer que as palavras sejam talentosas, por si só. Eu vivo de recursos…

Perguntam-me pela vida, o que faço… e cada resposta é sempre uma novidade com família e prateleiras de supermercado à mistura. Na verdade, ainda não sei responder. Vivo deste amor sem gente, sem praia nem cabana nem alianças de qualquer tipo visíveis, suficientemente capazes de fechar capítulos e mudar de assunto com algum conforto.

Se ao menos a poesia me amasse e, por onde passássemos, ela me desse a mão; ou estivesse lá como um pai para os nossos filhos ranhosos que pedem gelados na feira…

…Mas a nossa casa é um bordel com o mundo todo e cortinas, e eu sou a esteira de palha onde a poesia vem fumar um ópio e partir. Como um coveiro-viajante que semeia jazigos de família, e parte, ciente que atrás de si só vem morte.

Cabe-me a mim o provimento do lar. Suar as estopinhas para manter o orfanato e esfregar escadas. Não escondo os copos vazios. A minha desgraça é célere para quem nela se quiser deter, como numa novela. Os meus filhos choram um tipo de febre que pode muito bem ser gangrena hereditária. Mas nem por isso os amo menos. Dou-lhes nomes como se dão aos tumores e aos animais domésticos sem ração diária.

Existo numa estação de comboios com filhos pela mão e mamas secas. Não me perguntem quem sou ou o que faço. Eu conto histórias aos meus meninos para que eles não deixem de sonhar…
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8 de mai. de 2010

Quase perfeita

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Verborreia-me na tua beleza,
No toque de fogo que pões com a mão nos cabelos
A escorrer-te as costas nuas…

Tão dona de ti,
Tão foda-se todos os homens
E fazeres cara-feia às mulheres que te tentam beijar.

Tão dona de ti
Como de te pores vadia, quase
Inocentemente.

És como um pássaro de pessoas livres...
E não há nada mais agrilhoante do que ser um pássaro de pessoas livres!
Porque uma coisa é seres livre como elas
E outra é seres branca de viver a vida toda à sombra…
Sem a ascensão de olhar
Com que um escravo contempla
O pássaro simples.

Deves chorar muito
Como quem tem uma caixa qualquer onde se vai ver
De vez em quando…

Uma santa mexicana que ninguém conhece
Ou uma pedra do monte que te guarda os segredos…

Deves ser assim, ou talvez não…
Mas isso,
Tudo ou nada quase interessa
Para o querer foder-te
Tanto…


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7 de mai. de 2010

Sem título

Dou por mim feliz num dia de chuva.

Às vezes dou por mim feliz. E queria que o entendessem literalmente, ou seja, acho-me feliz como se estivesse fora de mim a apreciar a minha própria felicidade. Aqui à tempos encontrei-me assim feliz como um “guardador de rebanhos” desses que sabem a verdade e são felizes. E dei comigo a pensar que a felicidade deve ser isso, a capacidade de estar bem sem nenhuma razão aparente.
Sem nenhuma razão...aparente.
Sem nenhuma chave certa do Euromilhões, sem descontos, promoções ou outras complicações...

Sem.

Também pouco me importa a vinda do Papa. Ou melhor...importa... preferia que não viesse.
Certa vez escrevi o poema que agora releio. Parece-me verdadeiramente sintético de como me sinto nesses dias. Os poemas para mim são equações que revelam a sua vida interior à medida que os solucionamos. Como fruta que, quando mordemos, se desfaz em sumo que nos escorre pela boca da alma. E rimos como crianças com os queixos pegajosos de açucar.

O tal poema:

Deixei-me estar...
até desaparecer,
até que tudo em mim fosse ôco,
transformei todo meu corpo
num instrumento de sopro
e ofereci-o ao vento.

Não escondo o quanto me alegra ter escrito isto.
Não quero dar ares de Dalai Lama, porque não excluo os pequenos prazeres, nem nego a alegria de um aumento de ordenado, nem de chupar um Solero de frutos silvestres na mais quente noite de Verão. Sei o contentamento que provocam e me provocam. Mas é outra coisa o estar feliz.
É um para-além do contentamento, um estar em harmonia com tudo, nem que seja por um instante. É como algo que nos atinge. Como poder jurar que vi Deus a dobrar aquela esquina ali à frente. No outro dia, por exemplo, ví Deus no sorriso de uma criança desdentada. Também é frequente vê-lo ao pôr-do-sol de um dia quente, quando me sento em cima de um muro cheio de musgo, com as pernas cruzadas à chinês. São momentos de epifánia que nunca conseguirei descrever sem vos deixar a suspeita que fumei quelque chose.
Há tanta barafunda de coisas importantes à nossa volta... “já verificou isso bem”... “é preciso enviar isso assinado” “já me viu isso”... “chegue-me aí esse fax”... “o orçamento está feito” “ó caramba que chatice estes gajos sempre a ligar para aqui”... (e eu aqui a escrever, qual repórter de guerra no meio do tiroteio) e vamos para casa com coisas importantes ainda a ecoar na cabeça.
Por isso esquecemo-nos, e é normal, que somos pó das estrelas.
Sei o quão lírico isto soa, mas é tão verdadeiro como o orçamento que tenho que fazer, o termos uns avós em comum, que são um velhinho casal de estrelas. Não nos lembramos disso porque já foi à muito milhão de anos, e na altura não haviam Roleyflex's nem Polaroids, para que agora possamos recordar a união através de um albúm de casamento.
Então... nesses dias em que vejo no mundo uma luz diferente...talvez, mais não aconteça, que estar a ouvir a voz meiga desses nossos avós, não com os ouvidos, mas com todo o corpo e a alma, a apontar para um albúm imaginário e dizer “estas a ver esta estrela aqui!? É o teu tio Zé, foi uma grande estrela!! E esta aqui com esta permanente foleira?... Pois mas na altura usava-se!!
É a tua tia Fernanda!Foi uma bela estrela também? E este aqui?? Não sabes? Este pequenote aqui loirinho??”

...

Esta aqui és tu!

6 de mai. de 2010

Rapaz que rí sozinho.

Tenho um amigo que é um eremita dos tempos contemporâneos .

Vive dentro da sua solidão.
É um homem sem perfil, sem interesses e...sem rosto. Um homem de poucas palavras e erros ortográficos.
Um homem que se publicita pouco e de quem nunca se sabe notícia que não venha directamente da sua boca. É, apesar de tudo, um homem normal, sem nenhum ar de Jesus ou Buda, sem qualquer aspecto de salvador iluminado. Este meu amigo passa pela vida sem deixar rastro digital. Sim, é silenciosa a sua caminhada, mas quando fala canta, e quando canta conta. É provável que vocês também o conheçam...de vista. Acredito que o tenham visto mas isso não chega para que lhe empreguem o verbo conhecer. Dizer “Sei de que sujeito se trata” é o mais correcto.


-“Ah já sei! É aquele rapaz que está sempre sozinho... e às vezes rí sozinho!”


É esse mesmo.


“Parece um alienado!”

É...

     É mesmo o que parece. Mas não o é menos do que tu. A coisa da qual ele se aliena é que é diferente da tua... e da minha. Aliás aquilo de que ele se aliena é daquilo que te aliena a ti...e a mim. Ambos estamos alienados da alienação de cada um e é uma pena que assim continue. Uns falam demais e não dizem nada...é verdade. Mas também há gente que se cala demasiado porque se cansa de tanto falar para si própria. No meio deste rio de confusão tentamos construir pontes que nos unam as margens e por onde fluam pensamentos transportados dentro de contentores (não de chapa mas de palavras). Depois esperamos receber a troca justa por esses pensamentos que com tanto cuidado fomos regando até florirem em verso, e oferecemo-lo um ao outro como uma flor se oferece a uma mulher. E quem oferece flores não pode esperar menos que um beijo, um sorriso ou um olhar cúmplice. Mas não raras vezes fazemos pontes muito frágeis porque negligenciamos no material com que as construimos e a coisa não dá em nada que se veja.
     Um dos materiais que não pode faltar é o olhar aberto, brilhante, o olhar que mergulha dentro do outro, e o excesso de alcool com que muitas vezes construimos essas mesmas pontes deixa-nos os olhos muito pequeninos e o brilho que reflectem não é brilhante.
     Este meu amigo de que vos falo, embebeda-se nos olhos de todo aquele que lhe fala a cantar, droga-se da sua música, e fuma-lhes os sonhos e os devaneios como um charuto de ar puro. Disse-me ele que, no dia seguinte, acorda com uma ressaca de alegria e se ri o dia inteiro. Quando acorda acompanhado acontece-lhe, não raras vezes, descobrir que ela era mais bonita do que lhe parecera na noite anterior.

Ele contou-me que é por isso que muitas vezes sorri enquanto os outros pensam que está sozinho.



Tenho um amigo que é um eremita dos tempos contemporâneos .

Vive dentro da sua solidão.
É um homem sem perfil, sem interesses e...sem rosto. Um homem de poucas palavras e erros ortográficos.
Um homem que se publicita pouco e de quem nunca se sabe notícia que não venha directamente da sua boca. Este meu amigo passa sem deixar rastro dígital...
Tenho um amigo que não tem facebook.

4 de mai. de 2010

Sobre os prazeres

Decidi entrar no cabaret, de carrinho por trás e a pés juntos, sem medo de cartões vermelhos.

Vou ser polémico. Deliberadamente polémico e provocatório.
Queria-vos falar de algo que me anda a quilhar o juízo.

É o seguinte:

Beber shots é estúpido. Ficar bebado é giro, mas por sistema é entediante e triste.Passar o Domingo de ressaca é igualmente estúpido. Fumar é igualmente estúpido.
Não peço que me perdoem por isto. E não me importo que me digam que sou estúpido e tenho a mania que sou bom, porque eu já sei disso. Eu no fundo no fundo tenho é a puta da mania que sou melhor que os outros. Mas é mais lá para o fundo do fundo, porque no fundo no fundo até sou muito bom rapaz, embora não tão no fundo mas mais à superficie do que o fundo do fundo de ter a mania.  Vocês sabem...
Sei que pareço moralista, mas o estar a ouvir Patricia Barber fez-me pensar que isto era mais praseiroso que fumar um milhão de cigarros na vida. Há muita gente que se identifica com filmes tipo “into the wild” e há muita gente que diz “fuck the sistem”, pois é...”fuck the sistem”, e fuck a cultura que nos põe o cigarro na boca de modo tão natural como a nossa sede... de shots. Anda tudo tão triste com o sistema, tudo com tanta vontade de ir para longe da sociedade, quando não percebem que o fugir dela começa com gestos tão simples como deixar de fumar.

É que já sei qual é a porra do argumento: “Os prazeres da vida pá!! Comer , beber, fumar, foder.”



Sim! E qual deles preferem?
Sejam honestos...




Foder não é?

Fumar é fácil, é só questão de passar o sacrificio de ter que fumar os primeiros, até que deixemos de tossir, e depois meter as moeditas na máquina. “Oh Rui liga aí a máquina!”; beber também é fácil...”é mais 5 shots aqui para o povo”, mas Ui!! que carita de desagrado que fazemos quando mamamos o shot!! Dir-se-ia que não é coisa muito agradável. Já foder...
Não é dificil para quem promete casamento, mas para quem pede amor descomprometido como duas passas de cigarro, não é tão fácil. Fica caro porque tem que se levar a gaja para o estrangeiro.
Acreditem não sou o nerd que pensam. Emborracho-me bastante amiúde, mas tenho perfeita consciência do que quero quando bebo mais um shot. Desinibição para lhes ir pedir lume, dizer que não fumo e levar com um olhar que dói mais que um estalo.

Antes que se gerem confusões quero dizer que não sou contra o prazer, antes pelo contrário, sou a favor do quanto mais melhor. O que eu defendo é a diversidade. É urgente construir um mundo mais denso de prazeres. Não podemos afunilar a enorme diversidade de prazer à solta pelo mundo para a a quadrologia simplista do comer-beber-fumar-foder.

E eu pergunto-me tanta evolução para quê se provavelmente o homem-macaco fodia mais que nós?

É por isso que eu venho com este discurso a cheirar a avózinha. Porque cheira-me que os nossos avózinhos pinavam mais e fumavam menos, ainda que ao olhar para eles agora não o consigamos imaginar. Aquilo é que eram bailaricos à séria! Talvez seja verdadeira a tese de que nessa altura tocar na mão de uma menina era o equivalente a uma foda selvagem nos dias de hoje, mas pelo menos sempre se lembravam disso no dia seguinte. É que é importante lembrarmo-nos das fodas que damos, pois essas memórias podem ser úteis em tempos de menos bonança.
Foder é bom e é por isso que já o fazemos à tantos anos e ainda não nos cansamos, porque esta coisa do copo na mão e cigarro na outra, é muito fresca, historico-antropologicamente falando.
Comer também é bom , mas ainda deve ser melhor. Devemos educar as nossas boquinhas para que possam apreciar mais e melhor, além de bifes e batata frita congelada. Os homens-macaco odiavam batata-frita congelada.
Para além de querer com este post (e eu sou arrogante o suficiente para pensar que posso mudar o mundo) falar-vos de diversidade de prazer, quero também introduzir o tema da gestão dos prazeres.

Exemplo:

Quantos de nós já ouvimos pessoas que deixaram de fumar depois de muitos anos a bronzear os pulmões dizerem: “caramba agora o bife até parece que me sabe muito melhor”. É que sabe mesmo!
E ora aqui esta... essa mesma pessoa que além de fumadora é também uma grande apreciadora das maravilhas gastronómicas. Acontece que um prazer anulou outro e é preciso reflectir se vale a pena sacrificarmos verdadeiras orgias do palato em favor de monótonas passas de fumo. Já sei que me vão dizer que não faço ideia do bom que é fumar um cigarro com um café depois do almoço. Talvez seja, mas também vos posso confessar o quão merdoso é beijar bocas a saber a fumo. Sim é verdadeiro quem diz que beijar boca que fuma é o mesmo que lamber cinzeiro.

Não pensem que sou um fundamentalista anti-tabagico, só acho que fumar é muito démodé.
Era giro na época da boquilha, mas agora que ningúem tem nojo de o pôr directamente na boca, e se constrõem poucos edificios em estilo arte nova, onde se dançam swings e fox-trots, é feio.
Só consigo perdoar quem fuma charutos ou cigarrilhas com ar de Mies Van der Rohe ou bebe wiskhy com pinta de Sean Connery.

Também acho pouco elegante ver rapaziada de 14 anos a curtir "Smell like teen spirit" de cigarro na boca. Essa juventude devia estar a ouvir coisas que eu não compreendo, deviam obrigar-me a compreender a sua música ao invés de ouvirem música que era fresquissima para mim à 10 anos atrás. O que eu gostava de chegar ao bar que nós sabemos e ver os putos a curtirem música que parece de tolos e não música que já pareceu de tolos.

Isto está a ficar muito longo por isso passo à síntese final.

A mensagem que eu gostaria de passar (e sei o quão messiánico isto parece!) é que é preciso começarmos a gerir melhor os nossos prazeres assim como renová-los. É tão somente isto.
Talvez a revolução que precisamos seja mais silenciosa do que pensavamos, talvez seja mais fácil do que nos querem fazer crer, talvez envolva menos sangue e mais sorrisos sinceros, talvez seja mais possível do que impossível. 



Seria maravilhoso que este fim-de-semana uma rapariga bonita me viesse pedir “lume” em vez de lumes, um beijo em vez de um shot.
Os beijos andam muito caros quando era suposto serem grátis.
 
Adoro beijos...
... por isso, beijos a todas e abraços bastante comedidos e de rabo empinado para trás a todos.