24 de set. de 2012

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 não, o problema não é bem esse!... o facto de quem escreve o fazer, sobretudo, por vaidade, não constitui, em si, um problema. desenganem-se aqueles que pensam que um poeta, por exemplo, não é vaidoso; o facto de passar algo para o papel e de, com sorte, publicar um dia, quem sabe - ele há cada coisa! -, é um acto de extrema vaidade. é pensar que devemos impingir aos outros um terramoto que só a nós deveria abalar. quem não sente vaidade não escreve, restringe-se a pensar, deixa as ideias livres, deixa-as morrer ou transformarem-se num sonho, num pesadelo, num desejo quase inconsciente ou num arroto despropositado.
escrever é um vómito inusitado! mas quem disse que a vaidade era um pecado tramou-nos bem! também essa entidade escreveu numa tábua os seus decretos. se algum deus fosse realmente perfeito, não deveria ter sequer consciência disso; não deveria ter tampouco conhecimento do que é mau e do que não se deve fazer. assim sendo, penso existir vaidade em qualquer divindade e a nós, poetas, bicheza literada, atenção, seres importantes, disseram-nos que também nós temos a capacidade de ver por entre o nevoeiro denso. “ser poeta é ser mais alto”, eis a crença que possuímos secretamente, longe de qualquer olhar superficial. esta é a nossa vaidade! mas, penso, o problema não é bem esse!...
o problema também não é o negócio porco, o capitalismo engravatado que promove qualquer coisa desde que o lucro assim o justifique. moralismos à parte, tudo é um produto. um livro já não é um sinal de qualidade, é apenas sinónimo de poder económico que alguém tem para financiá-lo, publicitá-lo, prostitui-lo no sentido mais imaculado do termo - truz-truz, diabo seja cego, surdo e mudo! e, pelo que acabei de dizer, o problema também não é apenas o rasgo insuficiente que possuo para escrever. por favor!... isso que importa? sim, eu sei que não sou um jogador de futebol retirado do activo; nunca fui, juro, uma acompanhante de luxo; não sou jornalista – embora ande a estudar afincadamente, gosto de me convencer disto, para tal –; e, por último, também não tenho nenhuma estória com vampiros adolescentes que sentem inúmeras coisas ao mesmo tempo; por estes motivos, e não apenas estes, eu deveria ter algum pudor e tomar a decisão de nunca mais caligrafar, ou digitar alguma coisa para além do meu nome, rótulo que não posso nunca deixar. mas julgo que o problema, o maior, não é bem esse!...
muito menos o problema é a sociedade, que é tão boa a fingir qualquer coisa neste momento, no anterior, no próximo; a sociedade a ignorar esta linha e a próxima; alguém que se deparou com este texto por engano, ou porque gostou da imagem, ou do título; a ler esta linha e a pensar: este caralho quem pensa que é? peço-vos desculpa! é a vaidade!... mas, de facto, eu não penso que a sociedade seja o problema. não nego que gostaria que me lessem mais, mas sei que o tempo é tudo e vocês têm tão pouco. não se envergonhem de responder negativamente, e com orgulho, nada de abanar a cabeça, muito menos de encolher os ombros, quando um intelectual, sujeito a todos os níveis mesquinho, vos perguntar se já leram Marcel Proust, Fiódor Dostoiévski, James Joyce ou Franz Kafka. digam que não; digam que estavam ocupados a viver. porque, afinal, é disso que se trata! ele sentir-se-á erudito nesse momento, a superioridade transparecer-se-á nas suas palavras, mas ele não será capaz de perceber o problema, nem suspeitará sequer da sua existência, não escutará o ruído do problema; não terá um martelo para bater na linha férrea do comboio e verificar se esta se encontra em bom estado. ele é essa mesma linha de comboio, opaca no pensamento, mas oca em qualquer local indecifrável do corpo; ele é a linha e é o comboio e é o despiste iminente; ele é tudo o que desconhece; ele é, por consequência, a morte.
há tanta gente a respirar mas a não saber viver. é esse o problema! é a distância que criei em relação ao mundo, é a percepção da minha respiração branda, automática, e do meu cansaço, do meu desejo petulante e adiado de me despedir de mão dada com o sol e, juntos, mergulharmos no mar. amanhã surgiríamos de cara lavada e iluminaríamos sentimentos puros e frescos à nossa passagem. no fundo, só queria que o sol me cegasse, que secasse a tinta das canetas e que a necessidade não me ensinasse braille, para assim eu aprender a vida,

ponto
           

23 de set. de 2012

Passaste por mim


Passaste por mim a correr no jardim público, no teu jogging diário (talvez), onde por entre os edifícios uma réstia de sol espreita a esplanada. Eu estava de perna cruzada, tomando sol com óculos-de-sol e café, revendo apontamentos num moleskine de imitação, riscando, desenhando melhor uma vírgula – um truque dos sós!

Foi tão bonito ver-te passar. Não trazias contigo headphones, quando trazê-los diria mais da confiança que se tem no que se ouve quando se incarna uma ficção. Mas não – a tua corrida era honesta, inconsequente. Talvez, se não corresses, um banho de chuveiro te desse motivos para chorar…

Por talvez nenhuma razão, viver a vida seja como observar pequenos deuses a dobrar lençóis: uma certa alegria de falência nas pontas soltas. Ver algo bonito, sorrir, deixar uns trocos na mesa e ir para outro lugar com um abandono de missão cumprida.

Passaste por mim a correr no jardim público e sei agora o que sente um holograma.


Um dia de chuva também pode ser bonito

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Os sonhos voam através da janela,
O beiral chora um dia de chuva,
Limpo, claro, justo e belo.
A música atravessa o peito lancinante de alegria

Entretanto nada acontece, entre tudo que acontece.
O espaço torna-se amplo,
O tempo deixa de pesar no estômago.
Estar só deixa de significar o que quer que possa significar.
É só estar como sempre se está.
A felicidade parece tornar-se real,
E é tanto mais bela quanto mais blasfémia se torna cantá-la.

Entre a multidão das lamúrias -
Ecos de gente perdida,
que se trespassa sem se tocar
que se toca sem se sentir
que se olha sem se ver.

Há algo de muito belo por revelar
talvez, seja a única fé que me cumpre sentir.
Para me colar à imponderável, impossibilidade de existir.
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21 de set. de 2012

MEMÓRIAS DE PAREDES DE COURA - II


15 de Agosto, pois claro – essa data que o diabo roubou aos céus só para me azucrinar o juízo. Foi duro! Acordei taciturno e moderadamente interessado em sorver ruidosamente uma sopa morna – o pequeno-almoço dos campeões! Antes disso, bateram à nossa porta com luciférica violência. Pensei, inicialmente, poder tratar-se de uma vizinhança amotinada, munida de tochas e forquilhas, como se, inadvertida e acidentalmente, lhe tivéssemos roubado ‘à cara podre’ um estendal para pormos a nossa roupa a secar. Estranhei, pois nada disso acontecera realmente senão em sonhos meus. Eram, afinal, senhoras de Lisboa que vieram propositadamente da capital para me dar banho e cofiar com pentes de madrepérola os meus felpudos costados…

Fomos depois comer a tão ansiada sopa. Não podia ser num sítio qualquer! O meu fino génio, de gosto caprichoso, clamava por uma coordenada de estrelas cuja envolvência reunisse num só aroma, qual etéreo perfumista, o deleitoso e quente aroma dos fritos aliado à fragância das casas de banho, hermeticamente fechadas durante meia hora. Em suma, fomos ao Arcada Fire.
Saímos depois para a esplanada onde, para além de encontrar amigos marcoenses, me foi permitido achar um saquito com bolota no pavimento. É verdade! Achei uma talisca de bolota no chão que prontamente se entregou às autoridades, sob pena de aquilo provocar tentação às mentes mais frágeis. O polícia disse-me, com um sorriso, que era ‘da boa’, levando-me a crer que o estupefaciente proviria da regueifa da Sara Norte…

Fomos depois à ‘Boca da Boceta’ onde, em permanente atrofio mental e eminente quebra de tensão, sorvi algumas minis. Fomos muito bem tratados e, se de algo tivesse a queixar-me, seria por a minha cadeira não ter rodas, para além de um nítido desinteresse em segurarem-me a cabeça, quando era notório que ela pendia e eu me babava. Ao invés, encheram-me as goelas com pimentos padron e fêveras quentes - não é maneira de se tratar um vegetal! – mas conta a boa-vontade!

Depois disso fomos ver os ‘Frangles’, cuja performance correspondeu às expectativas…

Mas isso já são contas de um outro rosário que depois vos contarei, criançada… até porque amanhã é dia de escola, a fogueira está a apagar-se e eu não tenho aqui mais nenhum presidente da República para botar ao lume.

Vá, ponham-se agora todos em filinha para dar um beijinho no prepúcio aqui do Grande Chefe, como é costume da nossa tribo…

Continua…

20 de set. de 2012

Trapézio


Aos olhos de hoje
Os nossos de outrora
Tão pequenos e reguilas eram só inocentes.

Lembro-me
Daquele baloiço que fizemos com duas cordas e uma tábua das obras
Onde tu imitavas os trapezistas do circo
E toda a gente na esplanada do café te batia palmas.
Que universo glorioso na tua alma
Se deveria acender…

Éramos crianças e fumávamos beatas de cigarro
Que o teu pai doente deixava na lareira.

Lembro-me vagamente disso
E dos chocolates que te dava o amante da tua mãe
Para te pores a milhas
E vires brincar comigo…

Hoje rio-me disso,
Rio-me agora, isto é, rio-me a sério!
E pedir-te-ia desculpa por me rir com uma tão natural vontade
Se por acaso te soubesse vivo
E o assunto viesse à baila…

O mundo não era muito diferente de agora.
Éramos apenas crianças
E os adultos escudavam-nos
À ideologia dos esgotos…

Mas sabes?
É uma sorte estarmos vivos,
Uma ironia não termos partido o pescoço,
Uma pena não teres sido ginasta…

Eu olho para trás
E admiro o risco que punhas na tua habilidade,
A vida que jogavas num ramo frágil de oliveira…

Se olhássemos hoje para o mundo
Talvez fosses tu a concordar comigo
E a dizer que sim,
Que eu tenho razão,
Como se no trapézio da razão
Fosse eu agora o trapezista capaz das habilidades…

Mas não, meu rapaz,
Eras tu que estavas certo!
Talvez eu estivesse certo também
Mas só as tuas memórias o podem acervar,
Se as tiveres…

Que falta fazem os livros?
Troco a minha biblioteca por uma foda bem dada.

As minhas memórias
Não as troco por nada…


16 de set. de 2012

amplificado



sou dono de milhares de cores, aprisionadas em palavras,
e existo em várias personalidades, em distintos sujeitos.
tenho o preto e tenho o branco, acinzentados pelo tempo.
sou eu e eu pelo meio: um escreve e o outro somente relê:

nunca estamos de acordo; nunca somos um só ser.

escuto várias vozes, mas ninguém conhece o caminho.
vou assim, improvisando ao sabor do momento,
aguardando pelo líder ressurgido desse denso nevoeiro.

sou os oceanos. sou as terras que vi primeiro.

sou as folhas secas de novembro e as flores novas de abril.
tenho todo um povo dentro de mim, que não sabe bem o que quer.

sou Portugal. sou um cravo, pousado num peito de mulher.


13 de set. de 2012

PORTUGAL - I


Portugal tem tudo para ser o coração do mundo! Senão vejamos:

Temos um clima ameno e pouco dado a catástrofes naturais. Temos mar quanto baste, ilhas e uma costa repleta de magníficas praias (excelentes para tudo e sem tubarões); também temos montanhas e neve… a poucos km de abertas planícies onde a vista se perde. Temos uma exposição solar invejável e vento quanto baste. Não somos tão chuvosos como os nórdicos nem tão quentes como os países mais a sul. Temos as melhores condições climatéricas da Europa para nos autossustentarmos por via das energias renováveis. Temos água no subsolo e uma série de rios pauta o país de Norte a Sul.

Temos solos férteis e uma Zona Económica Exclusiva vastíssima em área e qualidade de pescado. O melhor peixe do mundo usa bigode e faz manguito!

Somos Atlântico e Mediterrâneo. Não somos a cauda da Europa mas a porta da frente. Não é ‘à toa’ que Portugal foi, em tempos, o mais importante centro portuário do mundo. Temos História, Arte, Cultura, Pensamento, Criatividade, Teatro, Música. Temos uma língua que se fala no mundo inteiro.

Temos uma gastronomia excelente e diversificada. Come-se muito bem em Portugal. Produzem-se também aqui alguns dos melhores vinhos do mundo, justamente diferenciados e estratificados em regiões demarcadas. O vinho verde, por exemplo, não existe em mais nenhuma parte do globo – só aqui! O vinho do Porto…

Temos um turismo largo e plural que vai do mais franco e popularucho baile popular até aos confins do universo estrelar Michelin. Paisagens maravilhosas, monumentos, ruínas milenares e obras arquitetónicas incomparavelmente revolucionárias. Pritzker’s, Nobel’s, medalhas e Palmas d’Ouro… temos cá disso tudo e basta apenas alguma cultura-geral para deixar de boca-aberta quem nos visita. Temos futebol também…

Somos um povo caloroso e acolhedor – não obrigamos nenhum estrangeiro a falar português só porque assentou aqui os pés e, ainda que noutros países nos obriguem a isso, somos nós, com os nossos parcos conhecimentos linguísticos, que mais servimos o nobre propósito da comunicação. Pode faltar-nos o conhecimento de outras línguas, mas desenrascamos o gesto, a mímica, e com alguma boa-vontade até levamos os turistas ao seu destino – e isso só nos engrandece enquanto povo!

Não somos tão trabalhadores como os chineses nem tão competitivos como os norte-americanos mas também não somos tão desafogados e preguiçosos como outros países que, por bom-tom, me escusarei de nomear aqui. Mas isso não é necessariamente mau nem faz de nós medianos, mas equilibrados (ainda que devêssemos ser mais cumpridores nos horários e deixar a conversa do futebol para a hora de almoço).

Somos conhecidos pelo desenrascanço; somos melhores fora-de-portas e o nosso complexo de inferioridade (que poderia ser um entrave) só nos faz estar mais atentos ao que vem de fora ou que de lá importa trazer.

Estamos perto das mais importantes capitais europeias e, a julgar pelas opiniões que de lá vêm ou de cá saem, até que somos bem bonitos(as) e cumpridores(as)…

Que falta, então, a Portugal?

Não nos escusemos a pensar/dizer que é petróleo ou diamantes ou uma tia-avó-rica com Portugal no testamento. Tampouco é um timoneiro ou um Salazarento.

Falta-nos um rumo – isso é certo. Mas o rumo é só o caminho. Temos potencial mas primeiramente é preciso saber qual é o sonho! Para onde ir! Serve de muito pouco a quem está perdido empregar força nas pernas e correr para lugar nenhum...

Continua…


8 de set. de 2012

E, N, O, S



[ESTE]

rodopiamos em torno de algo desconhecido e tentamos manter
aquele sorriso, aquela calma: tarde de domingo, talvez de maio.
não temos tempo para parar, cerrar os olhos e puxar o gatilho:
a bala de prata, a pólvora dos nossos pecados a matar o tempo.

rodopiamos e sentimos a febre do ouro e de bricabraques persas.
lá longe, no Hotel Horizonte, o sol despe mais um dia moribundo
e o mundo a tremer, a temer a noite. o surrealismo morto a gritar,
como um veleiro num oceano de promessas a circundar o monte
da certeza e da fé. homens frios a manipularem robôs colossais,
a suprimirem o púlpito; na rua, crianças que não sabem brincar
improvisam a canção da guerra inútil e implacável de seus pais.
a adolescência, Este, a acabar mas sem morrer: veneno a nascer.

[NORTE]

rodopiamos, como Álvaro de Campos, alucinados pelo futuro,
pela dor de sermos imperfeitos e do baixo alcance da nossa voz.
dizemos um adeus prematuro às aguarelas e colhemos as chaves
de casa, do carro, do foguetão em segunda mão que nunca voou…

rodopiamos ao ritmo frenético da luz anulada num buraco negro,
podemos sentir os corpos a levitar e a flutuarem no firmamento,
as nossas órbitas excêntricas em torno de nós mesmos: colisões,
pedaços nossos a perderem-se e a viajarem para longe. o veneno
a extravasar, o nosso pião a ser influenciado por ventos de leste
e pelo medo, brisa gélida, que emana do Sul, dos nossos mortos.
a sucessão do tempo após o tempo a entorpecer os nossos olhos.
o ser adulto: Norte: rugas a surgirem, fugas a pedirem voluntários.


[OESTE]

rodopiamos, agora mais lentamente, queremos ser o quente Vénus,
ter os dias longos e a superfície a quatrocentos e tal graus Celsius,
ignorar a brisa do Sul e ter uma atmosfera capaz de esmagar sondas,
brilhar como uma estrela e significar paixão numa mitologia antiga.

rodopiamos, lembrámos o tempo passado mas presente em nós,
dias em que não imaginámos os nossos rostos actuais. mentimos,
fizemos da virtude o nosso estandarte mas o mundo não quis ver.
então decidimos queimar todos aqueles contratos de boa-vontade
e existimos em total liberdade. com isso, percebemos o inevitável:
o quão impossível era ver a nossa fome de propósitos bem saciada,
vermos no espelho o ser idealizado, a pele fresca, incandescente,
e chegarmos juntos à Idade Curvada, Oeste: o final da caminhada.

[SUL]

rodopia uma luz, raios-gama vindos de um hemisfério de trevas;
no pensamento, um lar de eternidade vazio. faltam-lhe dois velhos:
um deus e um demónio que combatem, nas mais altas instâncias,
pela nossa guarda, pelo encerramento e remodelação do nosso teatro.

rodopia o nosso último suspiro acima dos nossos olhos tão turvos,
sinais de fumo de um rumo novo à volta do nosso mármore futuro.
tsunamis interiores a nós, o veneno a conquistar as mãos trémulas;
os piões partidos, lascas de madeira, quase agulhas ou cacos de cristal
que espelham os nossos movimentos de um dia, modo condicional
daquilo que ambicionámos ser. eu seria, tu serias, nós seríamos se…
e tudo isso são pedaços agora, na hora em que estes versos se calam;
e tudo isto termina aqui, no Sul, onde não existe mistério ou segredo.

raios me partam! a velha bússola tinha bruxedo. 

6 de set. de 2012

d'enfouissement



fazer da escrita uma vida é como ser recolhedor de lixo.
e não considero, de todo, este um ofício demeritório.
o mundo precisa de uma limpeza permanente,
e alguém tem de remexer a porcaria, esse território olvidado.

mas penso ser legítimo que todos queiramos uma vida melhor;
todos precisamos de um banho, rápido ou de espuma, ao fim do dia,
de uma viragem na sorte – um sonho bom já não é mau!

entre um recolhedor de lixo e eu a diferença é apenas o odor,
esse que fica retido na pele.
não há sabonete azul e branco que leve o sarro de um poema;
não há um perfume caro, um crítico literário,
nem a vaidade que possuímos metida num frasco,
que sempre se abre aquando de uma leitura prazerosa,
que ornamente o aterro que somos – o erro que reciclamos.

ambos partilhamos o cansaço do mundo nocturno,
a vontade de dormir bem fundo,
de possuir sapatos novos, envernizados,
que toquem o acelerador de um automóvel topo de gama,
ir para longe, Côte d’Azur, tanto faz, mas sempre com pressa,
e jantar boeuf bourguignon num restaurante três estrelas Michelin.

5 de set. de 2012

Pertença

Hoje senti vontade de ser livre.
Amarrei-me ao mundo e saí a correr. Parti à procura de mim.
Já não me reconheço nas palavras, nos gestos, no meu corpo.
Levo o eco da tua voz. E um sorriso que perdeste e me caiu aos pés.

Hoje senti saudades minhas e desisti de mim. Deste conceito de homem que criei e moldei para me sentir alguém. Alguém nos moldes de alguém que já não sinto.

Além do tempo e deste espaço despojado de sonhos estarei. Só.

Quero que me procures no mar. Despe-te e mergulha até mim. Esvazia-te de nada para depois te encheres de ti.

Hoje senti vontade de ser livre. 
Mas descobri que já não me pertenço.