[ESTE]
rodopiamos em torno de algo desconhecido
e tentamos manter
aquele sorriso, aquela calma:
tarde de domingo, talvez de maio.
não temos tempo para parar,
cerrar os olhos e puxar o gatilho:
a bala de prata, a pólvora dos
nossos pecados a matar o tempo.
rodopiamos e sentimos a febre do
ouro e de bricabraques persas.
lá longe, no Hotel Horizonte, o
sol despe mais um dia moribundo
e o mundo a tremer, a temer a
noite. o surrealismo morto a gritar,
como um veleiro num oceano de
promessas a circundar o monte
da certeza e da fé. homens frios
a manipularem robôs colossais,
a suprimirem o púlpito; na rua,
crianças que não sabem brincar
improvisam a canção da guerra
inútil e implacável de seus pais.
a adolescência, Este, a acabar mas
sem morrer: veneno a nascer.
[NORTE]
rodopiamos, como Álvaro de Campos,
alucinados pelo futuro,
pela dor de sermos imperfeitos e
do baixo alcance da nossa voz.
dizemos um adeus prematuro às
aguarelas e colhemos as chaves
de casa, do carro, do foguetão em
segunda mão que nunca voou…
rodopiamos ao ritmo frenético da
luz anulada num buraco negro,
podemos sentir os corpos a
levitar e a flutuarem no firmamento,
as nossas órbitas excêntricas em
torno de nós mesmos: colisões,
pedaços nossos a perderem-se e a
viajarem para longe. o veneno
a extravasar, o nosso pião a ser
influenciado por ventos de leste
e pelo medo, brisa gélida, que emana
do Sul, dos nossos mortos.
a sucessão do tempo após o tempo
a entorpecer os nossos olhos.
o ser adulto: Norte: rugas a
surgirem, fugas a pedirem voluntários.
[OESTE]
rodopiamos, agora mais
lentamente, queremos ser o quente Vénus,
ter os dias longos e a superfície
a quatrocentos e tal graus Celsius,
ignorar a brisa do Sul e ter uma
atmosfera capaz de esmagar sondas,
brilhar como uma estrela e
significar paixão numa mitologia antiga.
rodopiamos, lembrámos o tempo
passado mas presente em nós,
dias em que não imaginámos os
nossos rostos actuais. mentimos,
fizemos da virtude o nosso estandarte
mas o mundo não quis ver.
então decidimos queimar todos
aqueles contratos de boa-vontade
e existimos em total liberdade.
com isso, percebemos o inevitável:
o quão impossível era ver a nossa
fome de propósitos bem saciada,
vermos no espelho o ser
idealizado, a pele fresca, incandescente,
e chegarmos juntos à
Idade Curvada, Oeste: o final da caminhada.
[SUL]
rodopia uma luz, raios-gama
vindos de um hemisfério de trevas;
no pensamento, um lar de
eternidade vazio. faltam-lhe dois velhos:
um deus e um demónio que
combatem, nas mais altas instâncias,
pela nossa guarda, pelo encerramento
e remodelação do nosso teatro.
rodopia o nosso último suspiro
acima dos nossos olhos tão turvos,
sinais de fumo de um rumo novo à
volta do nosso mármore futuro.
tsunamis interiores a nós, o
veneno a conquistar as mãos trémulas;
os piões partidos, lascas de
madeira, quase agulhas ou cacos de cristal
que espelham os nossos movimentos
de um dia, modo condicional
daquilo que ambicionámos ser. eu
seria, tu serias, nós seríamos se…
e tudo isso são pedaços agora, na
hora em que estes versos se calam;
e tudo isto termina aqui, no Sul,
onde não existe mistério ou segredo.
raios me partam! a velha bússola
tinha bruxedo.
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