29 de jun. de 2012

Raios!


- Estão cá todos? Façamos então a chamada. Raio do computador?... raio do computador?
- Presente.
- Então desliga lá o Facebook… raio dos copos?
- Presente. Estou só a encher o copo e já vou…
- Cigarros?... cigarros? Onde está o raio dos cigarros?
- Estou aqui à porta, que diabo! O raio do isqueiro já está aí, por acaso?
- Boa pergunta! Onde está o raio do isqueiro?
- Estou aqui atrás do raio do computador. Bem sei que sou pequenito, mas também…
- Raio dos amores?... pois, esses… bem, é o costume. Improvisamos qualquer coisa e depois logo se vê se lhes agrada. Raio da hora?
- Presente, óbvio. Ainda há quem chegue a horas! Um gajo vem para aqui cedo e é sempre a mesma merda! E vamos começar quando? Amanhã tenho de ir trabalhar…
- Eh, pá! Tem lá calma! Cala-te um bocadinho e deixa-me fazer a chamada… o raio do cão anda aí?
- Acho que está lá fora a dormir, mas com esta barulheira o mais certo é acordar…
- É, deixá-lo estar sossegado… raio da música?
- Está mesmo a chegar. Se ao menos tivéssemos o Facebook aberto…
- Ó raio do computador, tu vê lá mas é se não crachas a meio…
- Eu? Quem está sempre a desestabilizar isto é o raio do vinho!
- Pronto, agora a culpa é minha! Se eu não estivesse aqui ninguém vinha…
- Que raios! Organizem-se!
- O raio do cinzeiro ainda não está aqui!
- É, eu também não o vejo…
- Olha que dois! Estou aqui, pá! Fui só botar ao lixo a porcaria que vós fizestes!
- Nós, porcaria?
- Pouco chiqueiro! Bem, vamos lá começar a escrita… alguém tem alguma ideia do que vamos escrever?
- Não eras tu que devias saber isso?
- Não fizeste os trabalhos de casa, foi?
- Pronto. Já cá faltava o raio do tédio e o da folha branca!...
- Eh, pá! Estou cansado desta merda…
- Eu cá também já não digo mais nada…
- Hello people! What’s up!
- Vá, até qu’ enfim chegou o raio da música… e hoje vem em inglês!...
- Hoje vi os teus loves
- A sério? Conta lá, mas baixinho para ninguém ouvir…
- Baixinho? Põe mas é o raio da música em cima da mesa para se ouvir melhor que eu vou encher outro copo…
- Isqueiro? Isqueiro?
- Tou aqui, cigarros!
- Foda-se! Estou farto desta merda! É só bláblá, só bláblá e nada. Eu trabalho de manhã cedo, caramba… vou-me embora!
- Pronto. O raio das horas passou-se. Ainda por cima é ele que desliga a luz no quadro…
- Eu também vou!
- Vai Branca, vai. Também não fazes cá falta nenhuma!
- Sem luz não vale a pena! Sem Facebook nem nada… dá-me logo o sono. E eu sem luz sou como o português sem o café antes de ir trabalhar…
- Ó isqueiro, um cafezito até marchava?…
- Ui! Só de pensar até fico em flamas…
- Qual quê? Um scotch agora é que era…
- E uma peçada…
- Alguém pare o raio das horas que eu tive uma ideia!
- Pois, agora é que era…
- Vai-te foder, Tédio!
- Se alguém souber ligar o quadro, eu ainda fico mais um bocado… pus uma cena que já deve ter prá’í uns vinte likes


24 de jun. de 2012

Fantasma d'ópera


Eu não sou fantasma d’ ópera
A que um senhorio de teatros permita deambulações clandestinas
Mas vejo-te dançar no palco
Para onde a tubagem do coração abre um respiro
Junto à claraboia

Contemplo-te na solidão absoluta dos sótãos poeirentos
Sentado numa caixa desconfortável
Que diz Frágil
Sem pensar nisso
E se pensasse,
Talvez a ideia de uma poltrona estragasse tudo
Ou comprasse o fruir infantil

Olho-te e gosto
E tudo à nossa volta é um cenário nublado
Que Deus fez sem Photoshop

Não é que use máscaras
Ou me esconda atrás de um espelho
Para te ver sorrir às flores
Que num flash de sonho te pus em jarra
No camarim

Tu sorris e fazes-me perguntas
Eu digo ãh?
Que sim
Sorrio também
E sinto-me egoísta por sentir isto tudo
E sem palavras
Tocando apenas as tuas mãos no café…

.

7 de jun. de 2012

Tristes
os dias belos
Se as nossas mãos não se juntam
A passeá-los.

Digo-te…
não haverá dia mais belo do que hoje.
E podia jurar que ouço um fado, vindo de longe,

Foda-se…
Não há um pingo de poesia nesta merda
É que eu tinha toda a poesia para te dar .

Hoje.

“Fica para a próxima.”
Para quando deixar de ficar para a próxima
Esse buraco negro que fica com tudo que era
para ser hoje.
para ti.
para mim.

Há um ramo de flores frescas no lixo
Um lago a secar num peito
E mil beijos mortos na boca.

4 de jun. de 2012

Estás em casa?


- Estás em casa?
- Estou.
- Então vem-me buscar porque eu tive um acidente.
- O quê? Estás bem?
- Está tudo bem. Ninguém se magoou. Vem-me buscar.

 (…)

Assim começou a minha aventura naquela noite. Na verdade, ela tinha já começado mais cedo, comigo ao computador a beber e a escrever um tratado filosófico, em poesia, sobre uma coisa qualquer com base suficientemente sólida para me aguentar nela aos pinchos, enquanto a vontade e o vinho durassem. Não me lembro ao certo sobre que era…

Calcei-me e corri para a casa de banho a atirar mancheias de água para a cara enquanto escovava os dentes e, em cinco minutos, estava dentro de um carro a bufar e a fazê-lo rugir. Quando cheguei e vi o meu irmão bem, acendi um cigarro ao fim de tantos e nenhum como esse.

- Estás bem?
- Estou. Foi só chapa…

Os pirilampos da polícia davam àquele cenário um catastrófico dramatismo que nenhuma água ou força humana parecia poder limpar ou arrumar. Porém tudo estava calmo e em vias de se animar para o dia seguinte. Foi quando um polícia me bateu a pala, querendo inteirar-se da minha presença naquela equação, que as coisas se complicaram para mim.

- Boa noite! Os seus documentos, por favor…
- Eu vim só buscar o meu irmão. Ele é que teve o acidente!
- Ele veio-me só buscar. Eu é que tive o acidente!

- O senhor ingeriu alguma bebida alcoólica?
- Eu vim só buscar o meu irmão…
- Queira por favor acompanhar-me ao jipe para efectuarmos um controlo…

- Não vejo porque isso seja necessário. Ele só me veio trazer o carro. Sou eu que o vou levar…

- Se não se importa…

E foi assim que, pela primeira vez, entrei num tribunal para responder a um crime de desobediência. Acho que era isso – uma desobediência grave!

Uma vez ‘sentado no mocho’, pôs-se uma Grandessíssima e Meritíssima Juíza a fazer-me perguntas. Uma cavalona cheia de tesão por baixo daquele hábito negro. Eu não estava propriamente em condições de me achar com tesão e apenas um pézito nervoso bombeava sangue para o resto do corpo.

[-] Sim, claro… Eu compreendo… o colectivo compreenderá que eu estava em casa… não fazia tenções de sair… estava até descalço… blá blá blá…
[-] O senhor isto… o senhor aquilo… a sociedade e a ordem… o senhor compreenderá que não pode…

- Sim sim, eu compreendo… isto também não é nada do que eu tinha visto nos filmes com tribunais americanos…
- Perdão?
- Não me peça perdão, ora essa! Isto é frio e agreste mas também não é propriamente um salão sadomaso…

Por esta altura, um polícia (ou segurança, não sei bem!) começou a saltitar de uma coxa para a outra, sem se mexer. A olhar para a Meretíssima e para mim. Para mim e para a Meretíssima que, por esta altura, não sabia se havia de largar a caneta e pegar no martelinho ou pegar no martelinho e bater. Arriscou em vão escrever com o martelinho… e riu-se entre-dentes.

- O senhor é muito insolente. Tem noção? (…) faz ideia? (…) por isso, eu podia (…)
- Ó minha senhora…
- MINHA SENHORA?
- Perdão. Nossa Senhora… que estais no céu… e de costas para um azulejo pintado por alguém que devia estar tão bêbado que acreditava aqui poder fazer-se justiça…
- Vou mandá-lo prender. O senhor tem ideia? (…) faz noção? (…) o senhor estava bêbado e conduzia uma viatura a altas horas da madrugada, pondo em perigo a vida de outras pessoas! O que tem a dizer-me sobre isto?
- Foi por uma boa causa!
- Uma boa causa? Uma boa causa?
- Sim.
- Como pode o senhor chamar a isso boa causa? Você é uma vergonha para a sociedade!
- Sim, é verdade. A sociedade envergonha-se com muita facilidade de pessoas como eu. Mas isso é só a vergonha que ela tem de si mesma. Como quando se abstém de levantar um ser-humano que caiu redondo de bêbado no chão. E encosta os pezinhos um ao outro para que a cabeça de um aflito lhe não pise os pés ou olhe por dentro da sua bolha Actimel

E assim começou a minha primeira aventura, sem carta, na cadeia…