- Estás em casa?
- Estou.
- Então vem-me buscar porque eu
tive um acidente.
- O quê? Estás bem?
- Está tudo bem. Ninguém se
magoou. Vem-me buscar.
(…)
Assim começou a minha aventura
naquela noite. Na verdade, ela tinha já começado mais cedo, comigo ao
computador a beber e a escrever um tratado filosófico, em poesia, sobre uma
coisa qualquer com base suficientemente sólida para me aguentar nela aos pinchos,
enquanto a vontade e o vinho durassem. Não me lembro ao certo sobre que era…
Calcei-me e corri para a casa de
banho a atirar mancheias de água para a cara enquanto escovava os dentes e, em
cinco minutos, estava dentro de um carro a bufar e a fazê-lo rugir. Quando
cheguei e vi o meu irmão bem, acendi um cigarro ao fim de tantos e nenhum como
esse.
- Estás bem?
- Estou. Foi só chapa…
Os pirilampos da polícia davam àquele
cenário um catastrófico dramatismo que nenhuma água ou força humana parecia
poder limpar ou arrumar. Porém tudo estava calmo e em vias de se animar para o
dia seguinte. Foi quando um polícia me bateu a pala, querendo inteirar-se da
minha presença naquela equação, que as coisas se complicaram para mim.
- Boa noite! Os seus documentos,
por favor…
- Eu vim só buscar o meu irmão.
Ele é que teve o acidente!
- Ele veio-me só buscar. Eu é que
tive o acidente!
- O senhor ingeriu alguma bebida
alcoólica?
- Eu vim só buscar o meu irmão…
- Queira por favor acompanhar-me ao
jipe para efectuarmos um controlo…
- Não vejo porque isso seja
necessário. Ele só me veio trazer o carro. Sou eu que o vou levar…
- Se não se importa…
E foi assim que, pela primeira
vez, entrei num tribunal para responder a um crime de desobediência. Acho que
era isso – uma desobediência grave!
Uma vez ‘sentado no mocho’,
pôs-se uma Grandessíssima e Meritíssima Juíza a fazer-me perguntas. Uma
cavalona cheia de tesão por baixo daquele hábito negro. Eu não estava
propriamente em condições de me achar com tesão e apenas um pézito nervoso
bombeava sangue para o resto do corpo.
[-] Sim, claro… Eu compreendo… o
colectivo compreenderá que eu estava em casa… não fazia tenções de sair… estava
até descalço… blá blá blá…
[-] O senhor isto… o senhor
aquilo… a sociedade e a ordem… o senhor compreenderá que não pode…
- Sim sim, eu compreendo… isto
também não é nada do que eu tinha visto nos filmes com tribunais americanos…
- Perdão?
- Não me peça perdão, ora essa! Isto
é frio e agreste mas também não é propriamente um salão sadomaso…
Por esta altura, um polícia (ou
segurança, não sei bem!) começou a saltitar de uma coxa para a outra, sem se
mexer. A olhar para a Meretíssima e para mim. Para mim e para a Meretíssima
que, por esta altura, não sabia se havia de largar a caneta e pegar no
martelinho ou pegar no martelinho e bater. Arriscou em vão escrever com o
martelinho… e riu-se entre-dentes.
- O senhor é muito insolente. Tem
noção? (…) faz ideia? (…) por isso, eu podia (…)
- Ó minha senhora…
- MINHA SENHORA?
- Perdão. Nossa Senhora… que
estais no céu… e de costas para um azulejo pintado por alguém que devia estar
tão bêbado que acreditava aqui poder fazer-se justiça…
- Vou mandá-lo prender. O senhor
tem ideia? (…) faz noção? (…) o senhor estava bêbado e conduzia uma viatura a
altas horas da madrugada, pondo em perigo a vida de outras pessoas! O que tem a
dizer-me sobre isto?
- Foi por uma boa causa!
- Uma boa causa? Uma boa causa?
- Sim.
- Como pode o senhor chamar a
isso boa causa? Você é uma vergonha para a sociedade!
- Sim, é verdade. A sociedade
envergonha-se com muita facilidade de pessoas como eu. Mas isso é só a vergonha
que ela tem de si mesma. Como quando se abstém de levantar um ser-humano que
caiu redondo de bêbado no chão. E encosta os pezinhos um ao outro para que a
cabeça de um aflito lhe não pise os pés ou olhe por dentro da sua bolha Actimel…
E assim começou a minha primeira
aventura, sem carta, na cadeia…
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