Stephen Dedalus,
personagem de Ulysses, obra maior de
James Joyce, disse: «a história é um pesadelo do qual estou a tentar acordar.»
a realidade é isso mesmo, um sonho bom ou mau, que germina no nosso pensamento;
forma-se através da sucessão de associações, dependentes das características
singulares dos nossos olhos. a realidade e a verdade são conceitos abstractos,
o único dado concreto de que dispomos é a nossa existência, e essa, para que
possamos dormir tranquilamente, necessita de um sentido que amaine a sua
hibridez. Ivan Ilitch, personagem criada por Liev Tolstoi, viu-se confrontado
com essa necessidade a partir do momento em que a sua vida e a sua morte
começaram a coabitar o mesmo tempo.
no entanto, de
uma maneira geral, todos nós criamos ou nascemos com a necessidade de tornar o
mundo num puzzle simples; como um
jogo de crianças que apenas jogamos quando já somos adultos. a lógica, a razão,
a verdade… tão bom sonhá-las! durante muito tempo o Homem contentou-se em
explicar o universo com a ideia de um ser criador omnipotente e omnisciente. com
o passar do tempo, o Homem sonhou para si também essa omnipotência e essa
omnisciência. assim surge a teoria do Big
Bang. não é necessário perceber muito de física para perceber que esta é
apenas uma hipótese passível de ser verdadeira. é impossível alguém imaginar
uma explosão que eclodiu de um ponto onde Tudo estava concentrado e que existia
onde Nada existia, num não-tempo, num não-espaço. impossível imaginar! se algum
académico me quiser provar que tal é realmente possível, então ponham fim ao
Homem Comum, porque a lógica que possuímos não pode conceber tal coisa.
porém, admito, esta
é uma teoria em que necessitamos de acreditar, pelo menos até arranjarmos uma
melhor. até lá, questionemo-nos mas deixemos seguir a Vida. enquanto os deuses
dormem, podemos sonhar a verdade. ela não é aquilo que sabemos, é aquilo que conjecturamos
e conseguimos aceitar.
Enki
sugeriu a Anu, Deus-Primeiro, que eu fosse degolado,
para
que os deuses terrestres poupassem as forças.
e
assim veio ao Mundo um novo escravo: o Homem.
para
meus irmãos havíeis de procurar ouro
e
manter-vos-íeis cegos para o entendimento das maçãs.
é
de mim que descendes, Ilitch! ouve-me!
o
meu sangue e um pouco de barro são a tua essência;
a
tua vida tem o sacrifício oferecido da minha morte.
tu
és, por ventura, o derradeiro Homem, Ivan Ilitch,
e
todos aqueles que te rodeiam em silêncio
são
semideuses que te afagam no teu leito de morte.
-
não quero morrer! por Deus, não quero morrer!
a
morte nasceu contigo. a morte sou eu.
o
sangue que te pára nas veias foi outrora meu.
-
e quem és tu?
eu
sou Wé, o Deus Pai de toda a humanidade.
-
porque aceitaste a morte, ó Deus Desistente?
para
que os deuses, meus irmãos, pudessem descansar
e
para que o Homem, perante o tempo celestial dormente,
pudesse
abrir os olhos, amar a sucessão dos dias
e
chamar a isso Vida;
para
que pudesse sonhar o Universo e fingir que o entende.
Ivan,
fecha os olhos! a morte foi este teu tempo até agora
e
a dor é somente uma consequência de existires.
depois
de morto não tens rim nem apêndice, Ivan!...
-
deixa-me com as minhas dores! o tempo tudo sara!
não
quero morrer! não quero saber da eternidade!
não
temos tempo, Ivan! o tempo do Homem acabou.
Zaratustra
já vagueia pela cidade!...
-
quem é ele?
o
Novo Homem, aquele que encontrou ouro dentro de si.
-
e os deuses, teus irmãos, nosso pai, nada farão?
Anu
morreu a dormir, ao som de estrelas lacrimejantes,
e
Enki e os outros romperam os corpos pelo ouro.
como
vês, a utilidade do Homem Escravo cessou!..
4 comentários:
Um belíssimo pedaço de Literatura, meu caro. Gostei muito! Agora percebo a metamorfose da Mosca Morta ;)
Uma dúvida:
A segunda parte do texto é tua ou é retirada d'A Morte de Ivan Ilich?
... porque tem trejeitos de Nietzche (não necessariamente pela referência a Zaratustra).
Dois óptimos livros, já agora.
muito obrigado pelas palavras! :)
A segunda parte do texto foi também escrita por mim e é uma espécie de diálogo entre Wé (deus da mitologia suméria que aceitou humildemente ser sacrificado para que fosse criado o Homem)e Ivan Ilitch (personagem que se travou de razões com a Vida e a Morte até ao seu último fôlego).
este texto é uma mescla de várias obras que me influenciam bastante, tais como: Ulisses de James Joyce, A Morte de Ivan Ilitch de Tolstoi, Assim Falava Zarastustra de Nietzsche e o poema épico sumério - Atrahasis -, de onde retirei as personagens mitológicas presentes na segunda metade do texto.
Melhor ainda! Está muito bom!
Já li o Ilich e o Zaratustra (amigalhaços) e gostei muito.
Joyce nunca li (acho eu!) Mas fiquei com a mosca (morta?) atrás da orelha ;)
Abraço
James Joyce é fantástico e inesquecível, embora seja ainda hoje uma pedra no sapato para muitos académicos - mas que se lixem os académicos! ;)
abraço
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