6 de nov. de 2012

enquanto os deuses dormem



Stephen Dedalus, personagem de Ulysses, obra maior de James Joyce, disse: «a história é um pesadelo do qual estou a tentar acordar.» a realidade é isso mesmo, um sonho bom ou mau, que germina no nosso pensamento; forma-se através da sucessão de associações, dependentes das características singulares dos nossos olhos. a realidade e a verdade são conceitos abstractos, o único dado concreto de que dispomos é a nossa existência, e essa, para que possamos dormir tranquilamente, necessita de um sentido que amaine a sua hibridez. Ivan Ilitch, personagem criada por Liev Tolstoi, viu-se confrontado com essa necessidade a partir do momento em que a sua vida e a sua morte começaram a coabitar o mesmo tempo.
no entanto, de uma maneira geral, todos nós criamos ou nascemos com a necessidade de tornar o mundo num puzzle simples; como um jogo de crianças que apenas jogamos quando já somos adultos. a lógica, a razão, a verdade… tão bom sonhá-las! durante muito tempo o Homem contentou-se em explicar o universo com a ideia de um ser criador omnipotente e omnisciente. com o passar do tempo, o Homem sonhou para si também essa omnipotência e essa omnisciência. assim surge a teoria do Big Bang. não é necessário perceber muito de física para perceber que esta é apenas uma hipótese passível de ser verdadeira. é impossível alguém imaginar uma explosão que eclodiu de um ponto onde Tudo estava concentrado e que existia onde Nada existia, num não-tempo, num não-espaço. impossível imaginar! se algum académico me quiser provar que tal é realmente possível, então ponham fim ao Homem Comum, porque a lógica que possuímos não pode conceber tal coisa.
porém, admito, esta é uma teoria em que necessitamos de acreditar, pelo menos até arranjarmos uma melhor. até lá, questionemo-nos mas deixemos seguir a Vida. enquanto os deuses dormem, podemos sonhar a verdade. ela não é aquilo que sabemos, é aquilo que conjecturamos e conseguimos aceitar.

Enki sugeriu a Anu, Deus-Primeiro, que eu fosse degolado,
para que os deuses terrestres poupassem as forças.
e assim veio ao Mundo um novo escravo: o Homem.
para meus irmãos havíeis de procurar ouro
e manter-vos-íeis cegos para o entendimento das maçãs.
é de mim que descendes, Ilitch! ouve-me!

o meu sangue e um pouco de barro são a tua essência;
a tua vida tem o sacrifício oferecido da minha morte.
tu és, por ventura, o derradeiro Homem, Ivan Ilitch,
e todos aqueles que te rodeiam em silêncio
são semideuses que te afagam no teu leito de morte.

- não quero morrer! por Deus, não quero morrer!

a morte nasceu contigo. a morte sou eu.
o sangue que te pára nas veias foi outrora meu.

- e quem és tu?

eu sou Wé, o Deus Pai de toda a humanidade.

- porque aceitaste a morte, ó Deus Desistente?

para que os deuses, meus irmãos, pudessem descansar
e para que o Homem, perante o tempo celestial dormente,
pudesse abrir os olhos, amar a sucessão dos dias
e chamar a isso Vida;
para que pudesse sonhar o Universo e fingir que o entende.

Ivan, fecha os olhos! a morte foi este teu tempo até agora
e a dor é somente uma consequência de existires.
depois de morto não tens rim nem apêndice, Ivan!...

- deixa-me com as minhas dores! o tempo tudo sara!
não quero morrer! não quero saber da eternidade!

não temos tempo, Ivan! o tempo do Homem acabou.
Zaratustra já vagueia pela cidade!...

- quem é ele?

o Novo Homem, aquele que encontrou ouro dentro de si.

- e os deuses, teus irmãos, nosso pai, nada farão?

Anu morreu a dormir, ao som de estrelas lacrimejantes,
e Enki e os outros romperam os corpos pelo ouro.

como vês, a utilidade do Homem Escravo cessou!..

4 comentários:

Sr. Mal disse...


Um belíssimo pedaço de Literatura, meu caro. Gostei muito! Agora percebo a metamorfose da Mosca Morta ;)

Uma dúvida:
A segunda parte do texto é tua ou é retirada d'A Morte de Ivan Ilich?

... porque tem trejeitos de Nietzche (não necessariamente pela referência a Zaratustra).

Dois óptimos livros, já agora.

André Imaginário disse...

muito obrigado pelas palavras! :)

A segunda parte do texto foi também escrita por mim e é uma espécie de diálogo entre Wé (deus da mitologia suméria que aceitou humildemente ser sacrificado para que fosse criado o Homem)e Ivan Ilitch (personagem que se travou de razões com a Vida e a Morte até ao seu último fôlego).

este texto é uma mescla de várias obras que me influenciam bastante, tais como: Ulisses de James Joyce, A Morte de Ivan Ilitch de Tolstoi, Assim Falava Zarastustra de Nietzsche e o poema épico sumério - Atrahasis -, de onde retirei as personagens mitológicas presentes na segunda metade do texto.

Sr. Mal disse...

Melhor ainda! Está muito bom!

Já li o Ilich e o Zaratustra (amigalhaços) e gostei muito.

Joyce nunca li (acho eu!) Mas fiquei com a mosca (morta?) atrás da orelha ;)

Abraço

André Imaginário disse...

James Joyce é fantástico e inesquecível, embora seja ainda hoje uma pedra no sapato para muitos académicos - mas que se lixem os académicos! ;)

abraço