Este texto que com esta frase se
inicia, surgido não do barro e muito menos da inspiração divina, fala-nos – a
mim também, pois não me lembro de alguma vez me ter sido relatado este episódio
bíblico nos meus tempos de catequese – de um momento bizarro na vida de Noé,
filho de Lameque, descendente de Set.
Quando ouvimos falar de Noé, o
nosso pensamento remete-nos de imediato para esse arquitecto naval ancestral,
que reuniu a sua família e dois espécimes ou sete pares de animais de todas as
raças existentes na Terra para, dessa forma, os conservar e permitir a deus que
procedesse a uma desparasitação do mundo terreno. Tratou-se, pois, quase de um
restauro à obra de arte que houvera criado. Diga-se que o resultado obtido não
foi muito diferente do restauro a que Cecilia Giménez sujeitou a obra Ecce Homo
de Elías García Martínez. A senhora tinha boas intenções; talvez deus também as
tivesse. À parte de qualquer especulação, ambos transformaram uma obra maçuda
num conteúdo mais pop.
Mas este texto quer que nos foquemos
de novo na personagem principal: Noé, Noach, como quiserem. Se olharmos para o
título deste texto, seremos levados a pensar que o seu conteúdo fará mais uma
piada fácil e insinuará que o Noé foi um grande maluco ao juntar-se com a
bicharada toda num navio de colossais dimensões e andar a navegar pelo mundo,
enquanto este estava inundado por águas divinas e tudo sucumbia pelos desígnios
bons do Senhor, até ao momento em que, através da informação de um pássaro,
perceberam que estavam encalhados no Monte Aarat.
(Comentário crítico efectuado
pelo primeiro leitor deste texto – eu: Ora bem, se a arca encalhou no alto do
Monte Aarat, era sinal de que ainda havia muita água por escoar, logo teria
sido mais sensato permaneceram na embarcação durante outros quarenta dias e
quarenta noites. Mas isto sou eu a dizer…!)
Outro pormenor engraçado dessa
insana jornada é o facto de deus ter dito a Noé, antes ainda de ter aberto as
torneiras lá de cima e ter dado início à contenda, que este deveria levar para
a arca dois exemplares das espécies mais impuras e sete pares de animais das
espécies mais puras. Ora, logo aí, Noé falhou com o combinado ao levar para a
arca toda a sua família, uma vez que não existe espécie mais impura do que o
Homem – em acréscimo, é bom lembrar que o estimado patriarca era casado com uma
das suas próprias sobrinhas. Mas, enfim, o importante é que tudo correu bem,
ninguém morreu, o mundo foi limpo e assim se deu início a uma nova era.
Vamos então ao episódio central
deste texto, que ocorre algum tempo depois dessa odisseia marítima. Já o mundo
era fértil, já Noé tinha tido outros filhos e tudo à sua volta era próspero.
Por consequência, deus, num acto de bondade e apreço pelo seu escolhido, certo
ano decidiu brindá-lo com uma óptima produção vinícola. Noé estava radiante com
aquela colheita, o vinho era excelente e, por isso mesmo, decidiu organizar uma
festa. Bem, já se sabe, festas onde haja álcool em abundância acabam sempre por
dar merda! E deu mesmo!
Noé bebeu, bebeu, transbordou e
voltou a beber. Quando a sua cabeça já assumia um peso insuportável, ele
decidiu ir para a sua tenda, onde momentos depois acabou por ser encontrado
todo nu pelo seu filho Cam, que provavelmente também já estava meio tocado. Cam
saiu da tenda e foi contar aos irmãos o que vira. Estes todos armados em
púdicos, como se nunca tivessem apanhado uma valente “zebra”, foram fazer
queixa do irmão mais novo e cobrir o papá (salvo seja, promiscuidade havia mas
não tanta!). Noé, naquela hora, deve ter escutado tudo de forma muito
distorcida, mas, mais tarde, quando começou a recuperar a consciência, teve a
autêntica atitude de um bêbado: libertar o mau humor e, ainda meio zonzo,
descontar no primeiro que lhe aparecer à frente! Dito e feito!
Noé saiu da tenda, provavelmente
ainda um pouco trôpego, e pelo caminho encontrou o seu neto Canaã, filho de
Cam. Olhou-o nos olhos, fez um esforço para articular bem as palavras e
disse-lhe:
- Maldito sejas Canaã! Servo
dos servos serás dos teus irmãos!
(Outro
aparte do primeiro leitor deste texto – eu: Cá para mim o que ele lhe disse
deve ter sido algo como: “Ah, catraio de um raio! Onde é que está o vagabundo
do teu pai? Responde-me antes que leves!” Eu acho que deve ter sido algo assim,
mas já se sabe como é o povo, gosta sempre de melhorar os contos originais;
também já se sabe como são essas situações que ocorrem em festas, são sempre
amplificadas e mitificadas, dando origem a piadas privadas entre as pessoas que
nelas estiveram.)
Moral
da história: Noé bebeu até cair, sujeitou-se ao ridículo, foi apanhado pelo
filho e o neto foi quem pagou as favas…o neto e a sua linhagem! Isto é justo?
De facto, deus escolheu uma óptima família para conservar. Um patriarca
alcoólico, com um filho mais novo que se entusiasma por ver o pai todo nu e com
outros dois filhos bajuladores e intriguistas, todos eles gerados por uma
mulher que era, ao mesmo tempo, mãe e prima deles. Bravo! Que família tão
funcional!
Nota: este
texto tem como base um episódio bíblico, não correspondendo no entanto
fielmente àquilo que na Bíblia é descrito. Tal como a Bíblia, este texto não
deve ser interpretado à letra, pois não constitui um documento histórico.