25 de mar. de 2013

A rave de Noé



Este texto que com esta frase se inicia, surgido não do barro e muito menos da inspiração divina, fala-nos – a mim também, pois não me lembro de alguma vez me ter sido relatado este episódio bíblico nos meus tempos de catequese – de um momento bizarro na vida de Noé, filho de Lameque, descendente de Set.
Quando ouvimos falar de Noé, o nosso pensamento remete-nos de imediato para esse arquitecto naval ancestral, que reuniu a sua família e dois espécimes ou sete pares de animais de todas as raças existentes na Terra para, dessa forma, os conservar e permitir a deus que procedesse a uma desparasitação do mundo terreno. Tratou-se, pois, quase de um restauro à obra de arte que houvera criado. Diga-se que o resultado obtido não foi muito diferente do restauro a que Cecilia Giménez sujeitou a obra Ecce Homo de Elías García Martínez. A senhora tinha boas intenções; talvez deus também as tivesse. À parte de qualquer especulação, ambos transformaram uma obra maçuda num conteúdo mais pop.
            Mas este texto quer que nos foquemos de novo na personagem principal: Noé, Noach, como quiserem. Se olharmos para o título deste texto, seremos levados a pensar que o seu conteúdo fará mais uma piada fácil e insinuará que o Noé foi um grande maluco ao juntar-se com a bicharada toda num navio de colossais dimensões e andar a navegar pelo mundo, enquanto este estava inundado por águas divinas e tudo sucumbia pelos desígnios bons do Senhor, até ao momento em que, através da informação de um pássaro, perceberam que estavam encalhados no Monte Aarat.
(Comentário crítico efectuado pelo primeiro leitor deste texto – eu: Ora bem, se a arca encalhou no alto do Monte Aarat, era sinal de que ainda havia muita água por escoar, logo teria sido mais sensato permaneceram na embarcação durante outros quarenta dias e quarenta noites. Mas isto sou eu a dizer…!)
            Outro pormenor engraçado dessa insana jornada é o facto de deus ter dito a Noé, antes ainda de ter aberto as torneiras lá de cima e ter dado início à contenda, que este deveria levar para a arca dois exemplares das espécies mais impuras e sete pares de animais das espécies mais puras. Ora, logo aí, Noé falhou com o combinado ao levar para a arca toda a sua família, uma vez que não existe espécie mais impura do que o Homem – em acréscimo, é bom lembrar que o estimado patriarca era casado com uma das suas próprias sobrinhas. Mas, enfim, o importante é que tudo correu bem, ninguém morreu, o mundo foi limpo e assim se deu início a uma nova era.
            Vamos então ao episódio central deste texto, que ocorre algum tempo depois dessa odisseia marítima. Já o mundo era fértil, já Noé tinha tido outros filhos e tudo à sua volta era próspero. Por consequência, deus, num acto de bondade e apreço pelo seu escolhido, certo ano decidiu brindá-lo com uma óptima produção vinícola. Noé estava radiante com aquela colheita, o vinho era excelente e, por isso mesmo, decidiu organizar uma festa. Bem, já se sabe, festas onde haja álcool em abundância acabam sempre por dar merda! E deu mesmo!
            Noé bebeu, bebeu, transbordou e voltou a beber. Quando a sua cabeça já assumia um peso insuportável, ele decidiu ir para a sua tenda, onde momentos depois acabou por ser encontrado todo nu pelo seu filho Cam, que provavelmente também já estava meio tocado. Cam saiu da tenda e foi contar aos irmãos o que vira. Estes todos armados em púdicos, como se nunca tivessem apanhado uma valente “zebra”, foram fazer queixa do irmão mais novo e cobrir o papá (salvo seja, promiscuidade havia mas não tanta!). Noé, naquela hora, deve ter escutado tudo de forma muito distorcida, mas, mais tarde, quando começou a recuperar a consciência, teve a autêntica atitude de um bêbado: libertar o mau humor e, ainda meio zonzo, descontar no primeiro que lhe aparecer à frente! Dito e feito!
            Noé saiu da tenda, provavelmente ainda um pouco trôpego, e pelo caminho encontrou o seu neto Canaã, filho de Cam. Olhou-o nos olhos, fez um esforço para articular bem as palavras e disse-lhe:
              - Maldito sejas Canaã! Servo dos servos serás dos teus irmãos!
            (Outro aparte do primeiro leitor deste texto – eu: Cá para mim o que ele lhe disse deve ter sido algo como: “Ah, catraio de um raio! Onde é que está o vagabundo do teu pai? Responde-me antes que leves!” Eu acho que deve ter sido algo assim, mas já se sabe como é o povo, gosta sempre de melhorar os contos originais; também já se sabe como são essas situações que ocorrem em festas, são sempre amplificadas e mitificadas, dando origem a piadas privadas entre as pessoas que nelas estiveram.)
            Moral da história: Noé bebeu até cair, sujeitou-se ao ridículo, foi apanhado pelo filho e o neto foi quem pagou as favas…o neto e a sua linhagem! Isto é justo? De facto, deus escolheu uma óptima família para conservar. Um patriarca alcoólico, com um filho mais novo que se entusiasma por ver o pai todo nu e com outros dois filhos bajuladores e intriguistas, todos eles gerados por uma mulher que era, ao mesmo tempo, mãe e prima deles. Bravo! Que família tão funcional!

           

Nota: este texto tem como base um episódio bíblico, não correspondendo no entanto fielmente àquilo que na Bíblia é descrito. Tal como a Bíblia, este texto não deve ser interpretado à letra, pois não constitui um documento histórico. 

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