Aniceto tinha
reconhecido a voz da mãe na multidão. Nunca lhe chamava mãe. Tratava-a por Lina
ou Puta Bêbeda. Desde pequeno que havia sido criado pelo avô paterno. Quando
ficou grávida, Lina não tinha como saber quem teria injectado aquele
espermatozoide triunfante no seu corpo. Pensou em fazer um desmancho, mas,
apesar de todas as vicissitudes da vida, Lina fraquejou. Aquele ser que
germinava dentro do seu corpo dava, de certa forma, um maior sentido à sua
existência. Tinha este tipo de pensamentos lamechas sobretudo quando estava com
os copos. Talvez por nunca ter dado descanso ao croft e à amêndoa amarga – sim, Lina tinha gostos requintados – o puto
tenha nascido tão reguila e, como dizer, sui generis. Este é um adjectivo que
não diz coisa nenhuma acerca de ninguém, mas fica sempre bem.
Ah, já me
esquecia! Devem estar a perguntar-se como é que Lina acabou por decidir quem
seria o desgraçado que daria o nome ao seu filho. Foi simples! Lembrou-se do
Joel, um rapaz de dezassete anos que a montava amiúde. Não seria um processo
elaborado convencê-lo de que aquele bebé era seu filho. Para Joel, Lina não lhe
vendia sexo, vendia-lhe as únicas manifestações de carinho que ele teve em toda
a sua vida. Era parco em palavras, mas tinha muitos planos para um futuro em
que Lina também entrava: iam casar. “Que eu morra aqui se não vamos casar! Os
meus pais que se fodam!” Nunca casaram e, de facto, o pai de Joel foi quem se
fodeu no meio daquela história de amor entre o seu filho, a quem tantas vezes
chamava larilas, e uma puta bêbeda.
Dois dias após
ter parido o seu filho, Lina procurou Joel onde este trabalhava para lhe dar a
boa-nova. A manhã ainda era uma criança quando ela chegou à obra. Os trolhas
puxaram dos seus repertórios de piropos mais brejeiros e ela sentiu-se o último
tremoço do pires. Pediu a um dos serventes, que ia misturando areia com cimento,
enquanto assobiava a melodia da música “Apita o Comboio”. Minutos depois Joel
chegou, com a cara coberta de pó e um lápis sobre a orelha. Não deve ter
escutado metade da conversa toda bem arranjada que Lina levava, mas percebeu no
entanto que era pai daquele recém-nascido. Os seus olhos comoveram-se, disse
que a amava, que iam casar, que os seus pais que se fodessem. Uma hora depois,
estavam no quarto da pensão onde Lina habitava e tentaram dar uma queca mas,
enquanto isso, o bebé chorava como se a vida que para ele ainda mal tinha começado
estivesse prestes a findar. Era impossível a tusa envolver os seus corpos com
todo aquele chinfrim. “Puta que o pariu”, disse Lina, em jeito de brincadeira,
só para quebrar o gelo.
Depois disso,
foram, de forma irreflectida, tentar registar o menino. Assim que se depararam
com o funcionário sisudo do registo civil, perceberam que ainda não tinham
pensado num nome. Não tinham também padrinhos, mas, a troco de cinco contos, lá
convenceram um casal de idosos a apadrinharem o seu primogénito. O motivo pelo qual
escolheram Aniceto para nomear aquele bebé ainda hoje ninguém o sabe. Há quem
diga que foi erro do funcionário do registo e há quem diga que Lina estava
embriagada no momento em que proferiu, pela primeira vez, o nome do seu filho
que, na verdade, era para se chamar Anacleto. Não sei. Mas Aniceto ficou.
Aniceto Evangelista Azeitona.
Quando chegou a
casa, Joel trazia nos braços o seu filho, pois Lina tinha ido já para o
trabalho, e assim o apresentou aos pais:
- Este é o meu
filho… Chama-se Aniceto… Vou-me casar… Chama-se Lina…
-
Meu larilas! Vais-te casar com uma puta? – berrou o velho Azeitona.
Houve
discussão noite dentro entre Joel e o pai. Quando os argumentos cessaram ou o
cansaço os venceu, foram dormir, ou fingir que dormiam. Joel levou o filho
consigo para o seu quarto. Olhou para ele, chorou muito, pensou nas palavras do
pai, “é uma puta”, pensou quantos homens já se teriam servido de Lina durante
aquela noite e, por fim, não pensou em nada quando cravou fundo nos pulsos a
lâmina de barbear e neles traçou duas linhas quase perfeitas. Qualquer
semelhança entre o suicídio de Joel e Pedro da Maia é mera coincidência.
Pela manhã,
quando a velha Azeitona entrou pelo quarto do filho para lhe perguntar se
queria um chã ou umas bolachas maria, não aguentou o que viu e sucumbiu por
enfartamento. Era o terceiro! Escusado será
dizer que Lina nunca chegou a ir buscar ou ver o seu filho, apenas anos mais
tarde, quando se lembrou da questão do abono. Corroboro: o velho Azeitona foi
quem se fodeu!
Mas
o puto cresceu, criado pelo avô, ensinado muitas vezes a cinto. Conhecia a mãe,
mas poucas eram as vezes em que estava com ela. Habituara-se a chamar-lhe Puta
Bêbeda, não por maldade, até porque durante muito tempo não soube o significado
dessa designação, mas porque era assim que o velho Azeitona se referia a ela. Uma
vez, no primeiro dia da escola primária, fascinado com as semelhanças físicas
entre a professora e a sua progenitora, Aniceto dirigiu-se a ela no final da
lição e disse-lhe num tom meigo e enternecedor:
-
A Sra. Professora é tão parecida com a minha puta…
Por vezes imaginava como seria o pai,
tentava compará-lo também a alguém, imaginando o seu perfil através de umas
fotografias que encontrou de quando este fez a comunhão solene. Olhou para elas
com o seu olhar irrequieto, e ficou com aquelas imagens entaladas na memória e
com uma pergunta entalada na garganta. Um dia, ao jantar, perguntou ao avô:
-
Ó bô, o pai era larilas?
O concerto do
Tony Carreira acabou e ninguém sabia do catraio. O avô apoquentou-se e alguém
levantou a hipótese de o miúdo ter sido raptado, como aquela menina inglesa,
hoje em dia há tanta gatunagem. O portuga é assim, tem sempre a palavra certa
na hora errada. Lina pôs-se a andar dali para fora, as ruas estavam à espera.