“E
aqueles que foram vistos a dançar foram julgados loucos por aqueles que não
podiam escutar a música”, Friedrich Nietzsche
De certa forma, é quase ridículo e
irónico estar aqui eu, parado neste momento, a escrever um texto – conjunto de
signos convencionados que comportam uma lógica – que incida sobre o legado de Nietzsche.
Pois, segundo este, “somente os pensamentos que nos ocorrem ao caminharmos têm
valor.” O tempo que perco a tentar coordenar as palavras da melhor forma, a
colocar orgulhosamente a pontuação adequada, a ponderar o rumo mais harmonioso
para uma frase pode ser insignificante para a história universal, mas, para
mim, são momentos vitais desperdiçados. Porque a percepção do tempo belisca
cada ser pensante e eu gosto de me sentir um pouco mais do que um mero
mosquito.
Seguindo a linha de raciocínio
preconizada por Nietzsche, o tempo em que existimos e existiremos enquanto
espécie não tem qualquer expressão quando comparado com a sempiternidade do universo,
que sempre teremos de aceitar por o nosso conhecimento não ser capaz de
encontrar o início e o fim de tudo aquilo que conhecemos. O universo, em si,
não é nada. É insípido, incolor, intangível, incomensurável; é apenas fruto da
nossa percepção e posterior racionalização. E é aqui que a nossa existência se
torna enviesada em relação a todas as outras formas de existir. O universo para
qualquer outra espécie é apenas o resultado de estímulos nervosos, desprovidos
de qualquer sistematização ou conceitualização. É, portanto, espasmódico.
No entanto, o Homem, culpado ou
não por ter criado dentro de si uma série de teias e conexões perigosas e
frágeis, mas que ao mesmo tempo lhe dão a desejada sensação de superioridade,
vê-se mergulhado numa série de convenções. A verdade e a mentira, o bem e mal,
a moral e a imoralidade, o certo e errado, tudo conceitos que toldam a sua
percepção e o seu universo, embora aparentemente o expandam. O ser humano usa a
palavra como um signo para tudo aquilo que percepciona e racionaliza, sem
compreender a falácia em que incorre ao proceder a uma generalização. E,
arrisco-me a dizer, todas as generalizações estão providas do erro, incluindo
esta.
Perdemos assim a nossa centelha
da genuinidade, tornámo-nos seres calculistas, redutores em relação a tudo
aquilo que nos rodeia na tentativa de nos amplificarmos e encontrarmos na Maçã1a realização plena. Temos
nomes que nada dizem acerca de nós próprios. Temos números que logicamente
provam aquilo que não podemos verificar. Temos conceitos e valores enraizados
que nos conduzem a cada acção que tomamos. Temos deuses como solução para
aquilo que não poderemos nunca perceber. Tomamos o acaso como a principal pedra
no sapato, quando, na verdade, o maior de todos os nossos problemas é a pouca
homogeneidade e compactação entre tudo aquilo que vamos convencionando.
E o que fazemos quando uma nova
ideia põe em causa todas aquelas que entretanto já estão solidificadas,
emaranhadas umas com as outras? Activamos o nosso sentido prático! Rejeitamos
aquilo que nos desafia e que obrigaria a uma total reformulação. No entanto, o
tempo passa e essa ideia assaltará um outro alguém e depois um outro e depois
um outro ainda. E começamos a perceber que afinal o impossível batia certo.
Raios partam os loucos…!
A dor que sentimos nesse momento
não é causada pelo facto de termos sido enganados, mas sim pela vergonha de o
assumir. Enquanto pudermos encobrir o erro com a lógica, com a moral, com as
palavras, com os números, fá-lo-emos! Diremos “isso é estúpido!” em relação a
tudo aquilo que nos escapa enquanto tivermos dentro de nós a altivez do
conhecimento empírico. Mas, dentro, alguma coisa bate com o Martelo em todos os
alicerces que vamos criando.2 É a dúvida. Consegue, certamente,
escutar o retinir do Martelo dentro de si se, por breves momentos cessar a
leitura deste texto.
Plop!
Poc! Poc!
Continuemos,
pois já estou a perder imenso tempo com isto e onomatopeias são coisas sem
grande lógica. Indo directamente ao assunto – atenção, sinto-me dono da verdade
neste momento! –, aquilo a que chamamos vida não passa então de uma mera
encenação da existência. Para nós, existir nãos nos chega, até um rato existe.
Necessitamos de viver e isso significa mais do que respirar, alimentarmo-nos e
reproduzirmo-nos. Significa montarmos um enredo, um tempo, um espaço e um
desfecho lógico que o cosmos possa aplaudir quando o Tempo nos fizer cair o
pano.
Aquilo que não sabemos é que a
Maçã é uma matrioshka infinita. Na
verdade – peço desculpa por ter utilizado este termo – não sabemos inúmeras
coisas. E chamo-lhes coisas, termo tão pobre, porque embora tenhamos conceitos
que as definam, não podemos sequer percepcioná-las. Racionalizamo-las a partir
de pré-conceitos. Exemplos desses pré-conceitos são a eternidade e a morte. Nenhum
de nós pode compreender o significado que esses termos abarcam, porque nenhum
de nós é eterno nenhum de nós ainda morreu. Pese embora a morte ser a ausência
total de sentidos e a sabedoria tantas vezes os suprime e dissimula.
Em última análise, somos a
personagem estereotipada de nós mesmos, escrita por outras mãos e estruturada
por outras vontades que não aquelas que o caos escolheu para nós.
Este texto acaba aqui. Vou agora
caminhar um pouco, sentir o vento no corpo e ver se ele ainda tem força para me
levar ao meu encontro.
“É naquilo que
a tua natureza tem de selvagem que restabeleces o melhor da tua perversidade,
quero dizer de tua espiritualidade…“
Friedrich
Nietzsche
1 Entender a Maçã como a expressão metafórica do conhecimento, pois
segundo o Livro de Génesis a macieira é árvore da sabedoria.
2 Crepúsculo
dos Ídolos ou Como Filosofar com o Martelo, obra de Nietzsche, publicada em 1888. O
martelo não deve ser encarado como uma ferramenta destrutiva, mas antes como um utensílio que permite verificar a solidez da construção. Aliás, era com um
martelo que era verificada a opacidade das antigas linhas dos
caminhos-de-ferro.
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