28 de jan. de 2013

Cidadela




Na cidade sem gente onde corríamos como crianças felizes e eu me divertia a ver-te partir montras com o teu jeito de menina a atirar pedras… resta só abandono.
Passei hoje pela boca-de-incêndio onde pela primeira vez te beijei as mãos. Ela olhou para mim como o cão a saber de ti. Fiz-lhe uma festa sobre o pó. Mas já não estavas e ela recolheu-se ao canto como também o cão se recolhe quando, depois de abrir a porta, me vê chegar só. Mal come. Cheira. Dá duas ou três lambidelas no bebedouro e retoma, sem fulgor nem esperança, àquele estado vegetativo. Tenho feito as minhas refeições ao seu lado, sentado no chão, na esperança de lhe abrir o apetite. Eu sei que ele tem fome mas bate-se estoicamente… Fico depois toda a noite a ver filmes, com o meu braço no seu dorso. Não me nega esse gesto, felizmente…

Ontem fui a um museu e trouxe de lá um quadro. É estranho entrar assim na casa das pessoas e trazer de lá coisas. Fico sempre com a sensação, ao sair, de o mundo estar lá fora outra vez cheio de gente, e chamarem-me ladrão…

Passo muito tempo na loja de discos, no cinema… o Nick também me acompanha mas depois cansa-se e volta para casa sozinho. Às vezes adormeço a meio de um filme e fico por lá. Evito ir ao bar e só lá passo para surripiar umas garrafas. Aos domingos vou. Ligo a música e ponho um dvd com os melhores momentos de futebol… depois deixo-me ficar pela esplanada a tomar sol e café, fazendo de conta que não estou só, apontando umas coisas no caderno. Escrevo melhor, agora que o tempo me sobra e não existe ninguém para julgar as minhas loucuras. Às vezes simulo a apresentação de um livro naquela livraria que tu tanto gostavas. Imagino as perguntas, respondo eloquentemente e, não raras vezes, ouço palmas... Certa vez, por causa de um poema revolto, bati com a mão na mesa e saí sem dizer ‘água vai’…

Sou finalmente livre e é um tédio.

Faço coisas absolutamente absurdas. Passo pelas igrejas, roubo os santos e coloco-os depois em sítios improváveis - na montra das lojas; a fazer de duendes kitsch nos jardins... foi até engraçado atravessar na passadeira com um santo e um manequim debaixo do braço para os colocar depois num banco de jardim. Ri-me alto enquanto pensava: - 'se alguém me visse...'

Mas ninguém me via. Ninguém me viu. Tal como eu não me vejo sem ti por perto...


26 de jan. de 2013

O narrador




Onde a polícia achou um cenário de horror, dormia atrás de um biombo uma criança surda. Chupando o polegarzito. Era preciso tirá-la dali rapidamente. Daquela paz enfim prestes a roubar-lhe a infância com meia dúzia de imagens macabras. Que fazer?

Cobri-la e levá-la para que nada visse parecia o mais indicado. Mas para onde? Os serviços sociais, é claro! Ligar para a assistente social. Apesar de ser domingo… ou já segunda-feira, que é o dia da greve por falta de verbas…

Pelas obras da ponte, fintando a burocracia, chegou uma velha resmungona que levou a criança nos braços e os bombeiros respiraram de alívio como se alguém lhes tivesse trazido água ou sumos de laranja. Os bombeiros estão fartos de leite e preferem uma cerveja! Nem eles sabem muito bem de onde provém essa propaganda que impinge aos campesinos a responsabilidade de os desintoxicar com leite… bah, que nojo!

Porém, foi a criança que matou toda aquela gente. Eu sei porque sou eu o narrador. Foi a criança que matou – eu vi! – mas não posso ser senão o interlocutor da história, e negarei tudo em tribunal se me chamarem a depor. Tenho o fortíssimo álibi de vos ter estado a descrever o acto, ainda que no exacto momento em que ele aconteceu…

Na escrita (não lhe chamemos literatura) o narrador escapa sempre à pressão do tempo e do espaço. Ele viu e sentiu, é certo, mas que lei universal deverá obrigá-lo a ser o que não é? Deverá o narrador ser culpabilizado pelas traições da Madame de Bovary? Deveria ele ter dito ao marido encornado que a mulher dele apertava as coxas com mais força por outra pessoa?...
O papel do narrador cumpre-se no exacto momento em que alguém o entoma, o lê! Tal como o amante o é (realmente) quando contra outro corpo se inflige ou aplica…

Mas safou-se! O puto safou-se! E ainda se riu nos lençóis novos…



25 de jan. de 2013

O Poço da Roda


Um homem perguntou ao poço quantos homens nele caíram.

Pouco escorreitas correm agora as suas memórias
ao longo das ruas que se deitam sobre eras remotas,
ruínas antigas e esquecidas, civilizações desfeitas,
escondidas dos seus olhares e dos seus passos,
retratadas harmoniosamente nos livros de história
para darem ao nosso orgulho uma certa razão de ser
e sem saberem disso mesmo resistem os sonhos velhos,
disformes no momento em que o cansaço se lhes junta,
como na hora em que ele se deteve junto ao Poço da Roda,
como tantos outros homens o fizeram antes dele,
tantas vezes sem caminhos, tantas vezes sem tudo,
apenas com os seus olhares e passos desencontrados,
ignorando que o mundo não era o solo que pisavam
mas antes o poço que transportavam dentro do corpo.

Há quem pare por vezes e de mim beba abundantemente,
há quem se vença pelo tempo e afogue a mente e a alma,
há quem não desista e deambule até sucumbir de secura
e outros que acham no reflexo da água o graal da loucura.

Assim respondeu o poço ao homem e este prostrou-se no chão,
sem molhar os lábios,
sem se ter afogado,
sem dar um único passo adiante,
sem contemplar o rosto ali iluminado pelo nascer do novo dia.


14 de jan. de 2013



Não me peças para mostrar os meus sentimentos. Eu sei só escrevê-los. E, ainda assim, só eu sei descodificá-los porque os construí como imagens sobre imagens sobre outras imagens. Cartografias para a falta de memória. Indicações de trânsito para a minha cidade interior que faz esquina com o universo. Se alguma beleza existir naquilo que escrevo é só mera coincidência e deveria ser tão chato como ouvir alguém a falar ininterruptamente sobre as férias no estrangeiro.


11 de jan. de 2013

o estéril lugar do moinho


eu, este texto, penso que deixamos de viver quando nos perdemos nas nossas memórias.
o novo ano surgiu solarengo, com um sorriso tímido portador de uma esperança quase oculta e esquecida. como uma criança que acorda de manhã com sono, mas nos olhos de cristal tem embutida a promessa da felicidade utópica. ele – esse que me escreve a mim – já não é uma criança. não é um adulto, é qualquer coisa sem uma definição estipulada. quando acorda pela manhã, sente normalmente o travo agridoce de um sonho sem sentido, desfeito, desmoronado. no momento em que encara o sol vespertino que o parece querer humilhar com a sua luz, ele lembra-se de outros dias, de outros acordares. lembra-se, amiúde, do moinho.
quando era criança, no verão, em dias de sol como este mas mais quentes, costumava ir com a sua mãe para a praia. aproveitavam o sol das manhãs, de manhãs calmas como esta mas mais harmoniosas, e saiam de mãos dadas pela porta de casa. caminhavam de mãos dadas pela ruas, conheciam-nas perfeitamente, assim como elas os conheciam a eles e condescendiam em encurtar as suas distâncias, diminuindo assim o caminho que os levava até ao areal. durante esse percurso, o cansaço não caminhava com eles. durante esse percurso o tempo não caminhava com eles. o tempo era como o moinho: imóvel.
quase todos os dias, com eles, iam também outros dois pequenos rapazes, da mesma idade que este que me escreve. um deles seguia vagaroso, o outro corria normalmente. talvez para ele o tempo já existisse, mas aquele miúdo corajoso tinha em si a força para o derrotar. quando chegavam à praia, as toalhas eram estendidas e dispostas lado a lado. a mãe dele sentava-se. não despia a camisola. não retirava o boné. não movia a sua atenção durante um único momento que fosse dos três rapazes que corriam pela praia, jogavam à bola ou fingiam andar à porrada, até que a exaustão ou a mão dele os chamasse para virem descansar, para colocarem protector solar, para comerem qualquer coisa…
em quase todas essas ocasiões, o rapaz que anteriormente houvera corrido pelas ruas nunca parava, a energia parecia-lhe inesgotável e, por vezes, vinha chamar os outros dois. passados alguns minutos, partiam de novo, tinham um mundo para conquistar. uma vez por dia, depois dessas pausas fugazes, diziam à mãe dele, vamos para o moinho. ela não gostava. ficava preocupada. mas deixava-os sempre ir. pedia-lhes para terem cuidado com os vidros que existiam dentro do moinho, que se podiam cortar. dizia-lhes ainda para não se demorarem, mas o tempo não existia.
o moinho era já muito velho. tinha as paredes desbotadas pela salitra e pelo esquecimento de todos aqueles que nele já não encontravam nenhuma funcionalidade. mas para ele e para os outros dois rapazes, o moinho era um universo paralelo e incomensurável, tímido e soturno por já não estar acostumado a receber visitas. nele os rapazes montavam os mais diversos enredos fantasiosos, reproduziam cenas que viam nos desenhos animados ou inventavam diegeses novas e, aparentemente, sem grande sentido.
no interior do moinho, as suas vozes multiplicavam-se e arrastavam-se em ecos. haviam três pisos. o primeiro estava inundado de areia, de cacos de vidro e dejectos de cães.  nele não existiam janelas, a claridade entrava apenas pelo lugar onde em tempos estivera a porta principal. no segundo patamar, existia uma janela maior, no terceiro várias um pouco mais pequenas. nunca chegaram a ascender a nenhum desses pisos, pois a passagem estava barrada por moveis descompostos e velhos. do cimo do moinho, descia um eixo vertical que se prolongaria, não estivesse ele quebrado, até à base. no centro do moinho encontrava-se um objecto estranho e complicado. era composto por um eixo horizontal, em torno do qual estava enrolada uma corda colocada com o auxilio de duas manivelas posicionadas em cada uma das extremidades. o objecto que descrevo assemelha-se, talvez, a um cabrestante de um navio, mas para os pequenos rapazes não se parecia com coisa nenhuma, nem tinha uma tipologia que pudesse sugerir qualquer tipo de história fantasiosa em torno dele.
hoje, ele – este que me escreve – sabe que aquele corpo estranho é chamado de sarilho; sabe também que o eixo que descia desde o topo do moinho servia para rodar o capelo e, assim, alterar a posição das pás. hoje ele sabe muitos mais pormenores acerca de moinhos, pois desde essas manhãs tão longínquas, desde que o tempo começou a correr, que o seu interesse e a sua nostalgia em relação aos moinhos foram crescendo.
no local onde existira o moinho, no local onde se perpetuaram tantas brincadeiras e tantas histórias e tantos mistérios de criança, não existe hoje mais do que nada. existe apenas a areia e os mesmos ou outros cacos de vidro. é nesse lugar estéril que ele se encontra neste momento, tentando descobrir alguns desses mistérios que ficaram por desvendar, tentando parar o tempo, retrocede-lo, erguer um moinho que transforma memórias em felicidade, girar o capelo na direcção oposta à do vento e contrariar a ácida lógica.
subitamente, lembra-se dos seus dois amigos de infância. lembra-se dos sonhos que tinham. o Luís, o mais calmo e temeroso dos dois, nunca chegou a concretizar o sonho de ser trolha. este que me escreve e o Luís seguiram rumos diferentes, mas sempre paralelos, nunca perderam aquilo que os unia e ainda os une. já o Daniel, aquele que corria, sempre destemido e invencível, nunca chegou a ser jogador de futebol. dizem que emigrou, que já é pai e, quando pensa nisso, este que me escreve, imagina um miúdo que, tal como o pai num tempo passado, corre indisposto a parar.

agora estão longe, mas, aonde quer que estejam, por certo ainda guardam dentro de si um pouco daquilo que viram e inventaram dentro daquele moinho; por certo ainda recordam também o sonho que fazia mover as pás deste homem afogado em memórias que agora me escreve. também ele nunca chegou a ser aquilo que queria ser. não interessa o quê, pois nem ele sabe bem. só a mãe continuou a ser mãe. só ela continuou a olhar preocupada para todos os passos que ele dá e a dizer-lhe, com o mesmo olhar luminoso mas tenso, para ter cuidado e para não se cortar.         

hoje, agora, quando sentado sobre a areia e sobre os cacos onde antes estivera altivo o moinho, ele percebe que afinal o que lhe rasga a pele mora dentro do seu corpo. talvez o eixo vertical que o une ao seu sarilho esteja também ele quebrado. assim, sentado sozinho no estéril lugar do moinho, ele fica a revolver os fragmentos que traz no bolso da lembrança. em locais diferentes, em momentos diferentes, aqueles três rapazes encontrar-se-ão sempre aqui, neste moinho inexistente mas vivo.

ele, este que me escreve, pensa que começamos a morrer quando perdemos as nossas memórias.

8 de jan. de 2013

Ilitch Wé


O nosso menino Ilitch Wé faz anos hoje!
Nunca percebi muito bem o que é isso dos 'Parabéns'. De igual modo, desconheço o que é Deus...

Mas queira Deus que ele tenha um aniversário do caralho!!