eu, este texto, penso que
deixamos de viver quando nos perdemos nas nossas memórias.
o novo ano surgiu solarengo, com
um sorriso tímido portador de uma esperança quase oculta e esquecida. como uma
criança que acorda de manhã com sono, mas nos olhos de cristal tem embutida a
promessa da felicidade utópica. ele – esse que me escreve a mim – já não é uma
criança. não é um adulto, é qualquer coisa sem uma definição estipulada. quando
acorda pela manhã, sente normalmente o travo agridoce de um sonho sem sentido,
desfeito, desmoronado. no momento em que encara o sol vespertino que o parece
querer humilhar com a sua luz, ele lembra-se de outros dias, de outros
acordares. lembra-se, amiúde, do moinho.
quando era criança, no verão, em dias de sol como este mas mais quentes,
costumava ir com a sua mãe para a praia. aproveitavam o sol das manhãs, de
manhãs calmas como esta mas mais harmoniosas, e saiam de mãos dadas pela porta de
casa. caminhavam de mãos dadas pela ruas, conheciam-nas perfeitamente, assim como
elas os conheciam a eles e condescendiam em encurtar as suas distâncias,
diminuindo assim o caminho que os levava até ao areal. durante esse percurso, o
cansaço não caminhava com eles. durante esse percurso o tempo não caminhava com
eles. o tempo era como o moinho: imóvel.
quase todos os dias, com eles, iam também outros dois pequenos rapazes, da
mesma idade que este que me escreve. um deles seguia vagaroso, o outro corria
normalmente. talvez para ele o tempo já existisse, mas aquele miúdo corajoso
tinha em si a força para o derrotar. quando chegavam à praia, as toalhas eram
estendidas e dispostas lado a lado. a mãe dele sentava-se. não despia a
camisola. não retirava o boné. não movia a sua atenção durante um único momento
que fosse dos três rapazes que corriam pela praia, jogavam à bola ou fingiam
andar à porrada, até que a exaustão ou a mão dele os chamasse para virem
descansar, para colocarem protector solar, para comerem qualquer coisa…
em quase todas essas ocasiões, o rapaz que anteriormente houvera corrido pelas
ruas nunca parava, a energia parecia-lhe inesgotável e, por vezes, vinha chamar
os outros dois. passados alguns minutos, partiam de novo, tinham um mundo para
conquistar. uma vez por dia, depois dessas pausas fugazes, diziam à mãe dele,
vamos para o moinho. ela não gostava. ficava preocupada. mas deixava-os sempre
ir. pedia-lhes para terem cuidado com os vidros que existiam dentro do moinho,
que se podiam cortar. dizia-lhes ainda para não se demorarem, mas o tempo não
existia.
o moinho era já muito velho. tinha as paredes desbotadas pela salitra e pelo
esquecimento de todos aqueles que nele já não encontravam nenhuma
funcionalidade. mas para ele e para os outros dois rapazes, o moinho era um
universo paralelo e incomensurável, tímido e soturno por já não estar
acostumado a receber visitas. nele os rapazes montavam os mais diversos enredos
fantasiosos, reproduziam cenas que viam nos desenhos animados ou inventavam
diegeses novas e, aparentemente, sem grande sentido.
no interior do moinho, as suas vozes multiplicavam-se e arrastavam-se em ecos.
haviam três pisos. o primeiro estava inundado de areia, de cacos de vidro e
dejectos de cães. nele não existiam janelas, a claridade entrava apenas
pelo lugar onde em tempos estivera a porta principal. no segundo patamar,
existia uma janela maior, no terceiro várias um pouco mais pequenas. nunca
chegaram a ascender a nenhum desses pisos, pois a passagem estava barrada por
moveis descompostos e velhos. do cimo do moinho, descia um eixo vertical que se
prolongaria, não estivesse ele quebrado, até à base. no centro do moinho
encontrava-se um objecto estranho e complicado. era composto por um eixo
horizontal, em torno do qual estava enrolada uma corda colocada com o auxilio
de duas manivelas posicionadas em cada uma das extremidades. o objecto que
descrevo assemelha-se, talvez, a um cabrestante de um navio, mas para os
pequenos rapazes não se parecia com coisa nenhuma, nem tinha uma tipologia que
pudesse sugerir qualquer tipo de história fantasiosa em torno dele.
hoje, ele – este que me escreve – sabe que aquele corpo estranho é chamado de
sarilho; sabe também que o eixo que descia desde o topo do moinho servia para
rodar o capelo e, assim, alterar a posição das pás. hoje ele sabe muitos mais
pormenores acerca de moinhos, pois desde essas manhãs tão longínquas, desde que
o tempo começou a correr, que o seu interesse e a sua nostalgia em relação aos
moinhos foram crescendo.
no local onde existira o moinho, no local onde se perpetuaram tantas
brincadeiras e tantas histórias e tantos mistérios de criança, não existe hoje
mais do que nada. existe apenas a areia e os mesmos ou outros cacos de vidro. é
nesse lugar estéril que ele se encontra neste momento, tentando descobrir
alguns desses mistérios que ficaram por desvendar, tentando parar o tempo,
retrocede-lo, erguer um moinho que transforma memórias em felicidade, girar o
capelo na direcção oposta à do vento e contrariar a ácida lógica.
subitamente, lembra-se dos seus dois amigos de infância. lembra-se dos sonhos
que tinham. o Luís, o mais calmo e temeroso dos dois, nunca chegou a
concretizar o sonho de ser trolha. este que me escreve e o Luís seguiram rumos
diferentes, mas sempre paralelos, nunca perderam aquilo que os unia e ainda os
une. já o Daniel, aquele que corria, sempre destemido e invencível, nunca
chegou a ser jogador de futebol. dizem que emigrou, que já é pai e, quando
pensa nisso, este que me escreve, imagina um miúdo que, tal como o pai num
tempo passado, corre indisposto a parar.
agora estão longe, mas, aonde
quer que estejam, por certo ainda guardam dentro de si um pouco daquilo que
viram e inventaram dentro daquele moinho; por certo ainda recordam também o
sonho que fazia mover as pás deste homem afogado em memórias que agora me
escreve. também ele nunca chegou a ser aquilo que queria ser. não interessa o
quê, pois nem ele sabe bem. só a mãe continuou a ser mãe. só ela continuou a
olhar preocupada para todos os passos que ele dá e a dizer-lhe, com o mesmo
olhar luminoso mas tenso, para ter cuidado e para não se cortar.
hoje, agora, quando sentado sobre
a areia e sobre os cacos onde antes estivera altivo o moinho, ele percebe que
afinal o que lhe rasga a pele mora dentro do seu corpo. talvez o eixo vertical
que o une ao seu sarilho esteja também ele quebrado. assim, sentado sozinho no
estéril lugar do moinho, ele fica a revolver os fragmentos que traz no bolso da
lembrança. em locais diferentes, em momentos diferentes, aqueles três rapazes
encontrar-se-ão sempre aqui, neste moinho inexistente mas vivo.
ele, este que me escreve, pensa
que começamos a morrer quando perdemos as nossas memórias.