Onde a polícia achou um cenário
de horror, dormia atrás de um biombo uma criança surda. Chupando o polegarzito.
Era preciso tirá-la dali rapidamente. Daquela paz enfim prestes a roubar-lhe a
infância com meia dúzia de imagens macabras. Que fazer?
Cobri-la e levá-la para que nada
visse parecia o mais indicado. Mas para onde? Os serviços sociais, é claro! Ligar
para a assistente social. Apesar de ser domingo… ou já segunda-feira, que é o dia
da greve por falta de verbas…
Pelas obras da ponte, fintando a
burocracia, chegou uma velha resmungona que levou a criança nos braços e os
bombeiros respiraram de alívio como se alguém lhes tivesse trazido água ou sumos
de laranja. Os bombeiros estão fartos de leite e preferem uma cerveja! Nem eles
sabem muito bem de onde provém essa propaganda que impinge aos campesinos a
responsabilidade de os desintoxicar com leite… bah, que nojo!
Porém, foi a criança que matou
toda aquela gente. Eu sei porque sou eu o narrador. Foi a criança que matou –
eu vi! – mas não posso ser senão o interlocutor da história, e negarei tudo em
tribunal se me chamarem a depor. Tenho o fortíssimo álibi de vos ter estado a
descrever o acto, ainda que no exacto momento em que ele aconteceu…
Na escrita (não lhe chamemos
literatura) o narrador escapa sempre à pressão do tempo e do espaço. Ele viu e sentiu,
é certo, mas que lei universal deverá obrigá-lo a ser o que não é? Deverá o
narrador ser culpabilizado pelas traições da Madame de Bovary? Deveria ele ter
dito ao marido encornado que a mulher dele apertava as coxas com mais força por
outra pessoa?...
O papel do narrador cumpre-se no
exacto momento em que alguém o entoma, o lê! Tal como o amante o é (realmente)
quando contra outro corpo se inflige ou aplica…
Mas safou-se! O puto safou-se! E
ainda se riu nos lençóis novos…
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