26 de jan. de 2013

O narrador




Onde a polícia achou um cenário de horror, dormia atrás de um biombo uma criança surda. Chupando o polegarzito. Era preciso tirá-la dali rapidamente. Daquela paz enfim prestes a roubar-lhe a infância com meia dúzia de imagens macabras. Que fazer?

Cobri-la e levá-la para que nada visse parecia o mais indicado. Mas para onde? Os serviços sociais, é claro! Ligar para a assistente social. Apesar de ser domingo… ou já segunda-feira, que é o dia da greve por falta de verbas…

Pelas obras da ponte, fintando a burocracia, chegou uma velha resmungona que levou a criança nos braços e os bombeiros respiraram de alívio como se alguém lhes tivesse trazido água ou sumos de laranja. Os bombeiros estão fartos de leite e preferem uma cerveja! Nem eles sabem muito bem de onde provém essa propaganda que impinge aos campesinos a responsabilidade de os desintoxicar com leite… bah, que nojo!

Porém, foi a criança que matou toda aquela gente. Eu sei porque sou eu o narrador. Foi a criança que matou – eu vi! – mas não posso ser senão o interlocutor da história, e negarei tudo em tribunal se me chamarem a depor. Tenho o fortíssimo álibi de vos ter estado a descrever o acto, ainda que no exacto momento em que ele aconteceu…

Na escrita (não lhe chamemos literatura) o narrador escapa sempre à pressão do tempo e do espaço. Ele viu e sentiu, é certo, mas que lei universal deverá obrigá-lo a ser o que não é? Deverá o narrador ser culpabilizado pelas traições da Madame de Bovary? Deveria ele ter dito ao marido encornado que a mulher dele apertava as coxas com mais força por outra pessoa?...
O papel do narrador cumpre-se no exacto momento em que alguém o entoma, o lê! Tal como o amante o é (realmente) quando contra outro corpo se inflige ou aplica…

Mas safou-se! O puto safou-se! E ainda se riu nos lençóis novos…



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