20 de abr. de 2010

No comboio

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A meio do caminho, faço uma pausa na leitura e pouso o livro no colo como se capitulasse uma viajem dentro de outra. Olho pela janela sem noção de estar abrindo atalhos ao espírito. Igreja de sensações sem esperança, missionário descontratualizado vagando à margem por uma cidade de pecado, sem penitência de jangada para as corridas de néon.

Passo como uma lanterna apagada que se ilumina para o mijo dos grafittis e para as pedras com ferrugem, chorando cada uma a sua lepra. Sou, acidentalmente, um turista que se perdeu do guia e achou a consciência num beco de lixo com vísceras, - Verdade das povoações pelo avesso, rasgada em vértice e aberta ao céu como o desprezo em ferida.

A minha visão confunde-se com a história de um hospital abandonado ou um prédio inacabado… desmemoriado para entorpecer falências e acomodar juízos e prejuízos. Os ratos ratificam-me e podem testemunhar a realidade que os bulldozers expurgaram para os segmentos de recta, sem licença de construção.

Viajo com a certeza futurista de me ter dentro de um colosso-mecânico-pós-moderno-e-pessimista, no rebordo interior de um abismo suspenso com fichas de andar à roda. Tudo é metálico e se crava languidamente nos morros de terra assassinada como um corpo com baque a cair de costas; como se o grande cenário compensasse a treva no bastidor sem ar.
Divago por uma passagem de nível e tudo é funéreo como um sepulcro comunista. Até a mulher, que é bonita e se move no apeadeiro, parece alombar um escombro de violação…

Detenho-me um pouco mais na paisagem como se ouvisse um acorde de plenitude ventilada. A paisagem escurece e enxuga-se de pessimismo num rosto que se olha para os vidros, com trabalhadores da construção segurando o sono com optimismo, na mesma carruagem que eu. Confesso sentir alguma paz nas suas derrotas…

Estou calmo como se tivesse bebido um trago que me soube bem e fizesse, depois de acender o cigarro, um gesto de boca quase involuntário. Não me sobram restes de medo e fui, no entanto, e sem que ninguém notasse, vencido como num combate de boxe por coisa nenhuma, como se a mulher que mais amei instantaneamente tivesse saído na última estação.

Para trás ficou uma estação inteira de carteiristas e a impressão de lá ter deixado uma bagagem roubada… mas estou lavado como se tivesse feito um testamento ou viesse de um duche assobiando, com a toalha enrolada à cintura.
Sirvo-me do livro sobre o joelho para apoiar o cotovelo… encosto a cara no vidro...
e durmo também.
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