4 de out. de 2009

Era uma vez...

Admiro as pessoas que são natas contadoras de histórias. Não faço distinção quanto a idades, ou até mesmo a experiência de vida, tanto me apraz ouvir um velho ancião calejado e marcado pela existência, como um pequeno ser que ainda não saiu debaixo das saias da mãe… especialmente se ainda estiver debaixo dessas saias, bens sabereis o porquê, mas isso são outros caminhos, pelos quais não quero enveredar neste momento.
Ora, a natureza de um contador de historias faz com que essa criatura seja um ponto atractivo, uma pessoa na qual vamos para casa a pensar, em que por vezes estamos na cama a olhar para o escuro do quarto ou até na sanita (utensílio muito apreciado pelos pensadores) e nos surge na lembrança, é um espírito sempre presente, mesmo quando não o sentimos.
Foi com uma pessoa destas que tive o imenso gosto de contactar aquando das minhas férias na minha outra pátria. Inúmeras histórias me confidenciou a pessoa á qual me refiro, mas nenhuma me marcou tanto como esta que de seguida irei partilhar convosco, meus caros compinchas.
Não vos irei pedir que para tal narrativa (tal como me foi pedido a mim), depositeis a vossa crença, ou até o vosso interesse, abandonai, pois, este conto e este vosso humilde narrador, no ponto que acheis mais adequado para prosseguirdes o vosso caminho. Se por um feliz acaso o seguires até ao fim, estais desde já convidados a brindar-me com um copo do vosso juízo ou opinião.
Assim, passai a ouvir-me não só com os tímpanos, mas também com os olhos!

Lá na Ucrânia; bem na Ucrânia profunda, onde e como dizem os locais que Cristo não passou, existe um vilarejo, uma pequena comunidade, com não mais de cinco centenas de habitantes, pessoas modestas que vivem da terra e daquilo que esta lhes oferece mediante o seu trabalho sazonal. Essa terra de seu nome Pukalyak é maioritariamente cercada por bosques e vegetação bastante densa, que dá ao lugar um aspecto bastante sombrio. Mas essa densidade de florestação não é o único elemento a rodear Pukalyak. No lado sul do vilarejo existe um lago, de águas bastante calmas, mas também bastante negras e profundas. Diz-se até, que este lago encerra segredos de uma aldeia submersa pelas suas águas… factor que contribui para que os locais dificilmente o frequentem. È como que um local proibido.
Na localidade, existia uma rapariguinha, como tantas outras da sua jovem idade, Oksana era o seu nome. Era alta e magra, de longos cabelos negros e de olhos verdes escuros como a vegetação que circundava Pukalyak, vegetação que exercia um enorme poder sobre a rapariga. Dizia-se enormemente atraída pela floresta, como se esta sussurrasse o seu nome, afirmando, até, que um dia iria explora-la apesar de todas as tentativas dissuasoras de sua velha mãe, sua única e fraca família.
Os dias e os meses, assim como as estações passavam sempre toldadas pela constante e doentia névoa e o desejo de se entregar á floresta de Oksana, não parava de crescer. Era Janeiro e o dia estava mais frio que qualquer outro, sua mãe morrera há precisamente um mês, na noite de natal… presente envenenado com que fora brindada a nossa rapariga pelos santos e personagens natalícios. Hoje, Oksana decidiu libertar-se desse desejo que já há muito a sufocava, precisamente hoje iria entregar-se á densa e proibida floresta sombria…
O que por lá se passou com a jovem é de todo desconhecido, uma coisa, porém, é certa, quando regressou, um par de anos depois, não era a mesma rapariga. Vestia as mesmas roupas com que partiu, ou melhor vestia o pouco que delas restava, pois não passavam de trapos gastos, rotos e sujos. Os seus longos cabelos negros estavam ainda mais longos, mas também bastante estragados, sujos e como que viscosos. Os olhos sem brilho, bastante enterrados acrescentavam uma expressão ainda mais demoníaca á sua face pálida. Não falava ou sorria, não gemia ou chorava, simplesmente se notava ausência de expressões em toda a sua pessoa. Trazia consigo uma criança nos braços, um recém-nascido, que diziam os locais ser fruto gerado no seu ventre depois de concebido entre si e uma das muitas criaturas demoníacas que povoavam a escura floresta. Razões de sobra para que a população local começasse a desprezar, escorraçar e criar mitos em relação a estes dois miseráveis seres.
Admiravelmente a jovem sempre se conseguiu manter viva e ao rebento, sem que para isso necessitasse da ajuda alheia. Receosa das represálias da população, Oksana mantinha-se sempre retirada do resto da pequena vila, arranjando-se, desta forma, sempre o melhor que lhe era permitido. Certo dia, tentada pela fome desenfreada com que vinha sendo assaltada ultimamente, não aguentou os espasmos do seu corpo e mais uma vez aventurou-se floresta adentro, desta vez, somente, com o intuito de caçar para se saciar do seu apetite e por sua vez proporcionar uma refeição mais digna ao pequeno ser que a acompanhava. Saiu logo pelo romper da manhã, com uma névoa cerrada e um silencio de morte, entrecortado pelo som da luta de um bando de corvos ao longe. Á criança, deixou-a muito aconchegada, num cantinho resguardado da casa.
Ao meio da manhã, ainda nem todos haviam despertado e a caça já havia saído da floresta. Uma lebre iria servir de repasto… Mas ao entrar em casa e para seu desespero e terror, Oksana constatou que o seu pequeno ente desaparecera. Pela primeira vez nos últimos anos, o seu rosto assumiu uma expressão, a sua minúscula boca suja abriu-se violentamente emitindo um som semelhante ao de um uivo e o desespero tomou conta da sua alma, se é que ainda a possuía. Saiu, aturdida com o acontecido e veio grunhir por auxílio para junto do vilarejo e dos seus habitantes, que logo se puseram a bramir insultos e ameaças contra ela. O chefe dos anciãos assumiu o seu posto e tomou a palavra, dirigiu-se a ela nos seguintes modos:
- «Avistamos sim, o fantasma de uma criança a chorar e a correr em direcção ao lago, mergulhando na sua escuridão. Com certeza, ficou nas ruínas da aldeia submersa, habitada por algumas pragas aquáticas. Reza pela alma do teu filho! Talvez tenha virado comida dessas pragas, procurando nas suas fezes, talvez o encontres…»
Nisto, agarrou a cabeça de Oksana, com as duas mãos, muito firmemente e gritou-lhe: - «Acorda, mãe aflita, liberta o filho que está perdido no teu sonho. Abre os olhos, deixa-o sair do teu interior!»

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