22 de ago. de 2012

MEMÓRIAS DE PAREDES DE COURA 2012 - I


A viagem começou como sempre em Marco de Canaveses – essa periferia de almas aventureiras que se lançam ao mundo para o conquistar em velocidade e espiral; uma terra onde o rugir da máquina enche a malga da glória; um lugar de coragem onde perder a sola de uma bota pode ser fatal. O Poço da Morte, enfim...

Mas foi daí que partimos. Eu e mais duas garbosas senhoritas. Ou melhor, três… se contarmos com a Madame Raquel – uma filha-da-puta de voz doce acoplada a um GPS de alcova. Aconselhava-me a bater contra os muros, a ribombar precipícios… poderia quase jurar que a ouvi assobiando nas saídas certas. Foi graças aos seus conselhos que atropelei, sem querer, uma vaca à entrada de Paredes de Coura. Bem… na verdade só atropelei meia vaca porque a outra metade ficou intacta e a mugir alto-e-bom-som no meio da estrada.
Ainda que esse momento tenha demorado uma eternidade na minha alma, enchendo-me de volúpia, vendo a cabeça da pobre bovina passando em câmara-lenta pelo vidro frontal da minha máquina assassina e gritando um grave e arrastado NOOOOOOOOOOO!!,  vi-me obrigado a não dar mais ouvidos à Madame Raquel, desligando-a da corrente do isqueiro… e, sãos e salvos, lá chegamos ao centro da vila.

Fomos buscar a chave do apartment que uma certa massagista marcoense negociou por todos nós…

[Um aparte: A senhora aqui referida é mesmo massagista, daquelas de Hospital e não das outras que põem anúncios na única parte do jornal que vós ledes. Respeitinho e sabão, seus badalhocos! Só não lhe chamei ‘endireita’ porque poderia dar azo a interpretações ainda mais levianas.]

… Ora, a senhoria deu-nos a chave e umas indicações tão manhosas que nos fez voltar para lhe botar juízo na massa encefálica e querer vir-nos mostrar as instalações comme il faut… mas não – Fez-me um desenho! Teve, pelo menos, a decência de não desenhar a casa com uma chaminé. Ao fim de meia-hora a deambular pelo universo campestre courense, achei-me saindo da viatura, pontapeando seres-vivos. Ajoelhei-me na estrada e, erguendo os braços contra o céu, gritei:
- NOOOOOOOOOOO!!
E o céu, trovejando como se lhe partissem a couraça frágil de tartaruga velha e amarelada, retorquiu:
- Quié?
E eu disse:
- Que chova outra vez, caralho! Mas que chova a sério como nunca choveu em Paredes de Coura, mas diz-me onde fica a puta da casa!!
E o céu disse:
- Tá bem… se é assim que tu queres! Segues-segues-segues-sempre-a-subir… e quando chegares ao cimo da estrada viras na primeira entrada à direita.
- Ok, obrigado.
- Na boa – disse ele.


Nessa noite fomos para a Vila porque havia festa de Rancho e, apesar de este não ser do comestível, começou logo ali a ver-se que o papel das retretes não ia durar muito tempo. As filas para o WC eram longas e de lá saíam caras de arroto, limpando o suor da testa com tiras de papel miraculoso.

Cerveja a um euro; malta a encontrar-se; beijos e abraços felizes; conversas ainda inteligentes e sinceras trocas de cuspo nas escadas para o adro da igreja; uma amiga 100% cool prometendo guiar a nossa banheira de imersão assassina. O festival prometia!...

Mas eis que ao fim do primeiro dia (o da receção ao campista) choveu pa caralho! Um cenário dantesco:
- Um militar vociferando insultos contra o céu, querendo rasgá-lo com toda a força dos seus dentes; um agro-freak com laivos de KKK tombando copos cheios de bebida cara a veraneantes próximos e, pelo meio, uma jurista respeitável na praça bamboleando uma contagiante dança da chuva que haveria de comover a face magra das pequenas e chorosas indieas que em vão se tentavam abrigar nas roulottes de fast food. Eu vi! Aquilo não era chuva – eram lágrimas!

No dia seguinte escapuliram-se várias pessoas cansadas do Golden Shower de S. Pedro: 
O Sr. Do Bigode, cujo felpo murcho barrava a gourmezisse de apreciar nacos de tora mergulhada em caldo verde; um tal de Sobrinho que empenhou a tenda para ir ao Porto comer uma feijoada; A Massagista e o Angolano que, supostamente, terão ido ao ‘Poço da Morte’ buscar botas mitradas, galochas e oleados. Rezam porém as más-línguas que há registos de credit card em vários motéis… quer no ir, quer no vir… mas vieram! Isto é, voltaram. E no mesmo dia… mesmo a tempo de tragarem uma bolonhesa tão má que intui em mim certa saudade quando penso naquelas miseráveis Carbonaras de pacote que traguei na ‘zona da alimentação’, vendo o Adolfo Luxúria Canibal degustando um Sushi possível. Honra seja feita, porém, aos dois casais de festivaleiros que me fizeram companhia quando eu me encontrava quase a chorar por estar a comer sozinho aquela ração de Auschwitz

Voltando um pouco atrás…

Nesse dia convidamos os nossos amigos a vir jantar lá a casa. Espalhamos velas de cheiro para expulsar o mau-olhado, esfregamos com sedas de Caxemira o melhor faqueiro, e dispusemos sobre a mesa, não só os copos mais cor-de-pérola que havia no nosso louceiro como também a mais fina porcelana que se pode encontrar nas lojas mais representativas da dinastia Ming em Portugal.

Os nossos amigos também não se fizeram rogados…

Um sem-fim de garrafas de fina craveira. Cevadas e lúpulos de vários períodos, quais delas as primeiras a sentar na fina grade de papel o seu lugar no mundo como poderosas Afrodites ou Emmanuelle sentada em esteira sedenta de verguinha… e PREDUTO! – Um soberbo cocktail que envergonharia a preferência por Martinis do mais fiel súbdito de Sua Majestade Isabel de Inglaterra…
Os convivas deitavam-se no chão. Comiam no chão. Esperando que um pouco de animalidade os roubasse do etéreo prazer que lhes roubava o natural curso das sensações terrenas...

Depois dessa volúpia, amigos, inaugurada com exorcismos castanhos e vista para um bosque de princesas, sabeis tão bem como eu… o céu escureceu ainda mais e castigou-nos a leviandade. Choveu. Choveu muito. Choveu como se um tarado tivesse pedido que chovesse ou o S. Pedro recebesse luvas da organização do Optimus Alive
Ainda tentamos ver alguns concertos (em vão) e cedo a malta bazou. Eu restei. Resignado a uma aventura  de chegar a casa pelo próprio pé, sem máquinas de guiar ou outros artifícios. O que a seguir se passou, bem…

Eu envergava calças e casaco de cabedal, botas Doc M., impermeável e, mesmo assim, a chuva entrava-me pelo peito, afogava os meus chatos e desaguava no dique que eram as minhas botas. Lembro-me de as tentar descalçar numa retrete malcheirosa, com o intuito de despejar aqueles litros de água (não consegui sequer desapertar os cordões). A partir daí só me lembro da épica viagem até casa. Ventava muito. Só para vos dar um exemplo: pelo passeio que eu estóica e solitariamente subia, descia um grupo de pessoas que o vento levou para o passeio oposto. Mas não a mim. Eu enrijei-me e aguentei aquelas agruras!

Atravessei a vila como se tivesse entrado num jogo da estátua (sem pedir licença) com demónios invisíveis batendo-me nas costas e na cabeça. Na descida do Intermarché reparei que me tinham cortado os travões e a minha velocidade aumentou consideravelmente. Comecei a correr (mais para me livrar dos pesados calduços de Lúcifer), e ao passar por um Subaru ali estacionado, o alarme dele disparou. Convém referir que, por essa altura, já metade da sola das minhas botas haviam colapsado e o que delas ainda restava era um língua de urticária que arrastava um slurp por cada lambidela no asfalto. Descendo a avenida vertiginosamente, tudo em mim se assemelhava a um camião do gás desgovernado…

Mas eu corria sem conseguir parar. A minha fronte esticava-se para a frente como se estivesse para ganhar no photo finish a um velocista olímpico. Já perto de casa, a sola de uma das botas colapsou e eu tombei como um boi sedento. Pus a mão no chão para me levantar e as veias brilhavam sob a chuva que as molhava. Rebolei e caí novamente. Busquei na alma e no coração toda a luz que me traz o amor pelas mulheres e ergui-me em tripé para voltar a andar. Corri depois até casa como corria o Tom Sawyer quando se escapava dela e, com uma proeminência que em tudo se assemelha a um Forest Gump a correr para saltar à vara, cheguei.

Abri, entrei e fechei a porta. Exausto e exaurido, murmurei o sincero grunho dos que um dia se viram ‘Lambidos pelo Diabo’... para gáudio dos meus companheiros que ali se achavam triturando víveres. Contei-lhes as minhas peripécias, bebi uma mini triunfal e fui deitar-me...

Não me lembro ao certo de tudo o que se passou nessa noite, até porque no dia seguinte achei duas pílulas no bolso do meu casaco (true story)... 

Foi épico e

Continua...

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