A viagem começou como sempre em
Marco de Canaveses – essa periferia de almas aventureiras que se lançam ao
mundo para o conquistar em velocidade e espiral; uma terra onde o rugir da
máquina enche a malga da glória; um lugar de coragem onde perder a sola de uma
bota pode ser fatal. O Poço da Morte, enfim...
Mas foi daí que partimos. Eu e mais
duas garbosas senhoritas. Ou melhor, três… se contarmos com a Madame Raquel –
uma filha-da-puta de voz doce acoplada a um GPS de alcova. Aconselhava-me a
bater contra os muros, a ribombar precipícios… poderia quase jurar que a ouvi
assobiando nas saídas certas. Foi graças aos seus conselhos que atropelei, sem
querer, uma vaca à entrada de Paredes de Coura. Bem… na verdade só atropelei
meia vaca porque a outra metade ficou intacta e a mugir alto-e-bom-som no meio
da estrada.
Ainda que esse momento tenha demorado uma eternidade na minha alma,
enchendo-me de volúpia, vendo a cabeça da pobre bovina passando em câmara-lenta
pelo vidro frontal da minha máquina assassina e gritando um grave e arrastado NOOOOOOOOOOO!!, vi-me obrigado a não dar mais ouvidos à Madame
Raquel, desligando-a da corrente do isqueiro… e, sãos e salvos, lá chegamos ao
centro da vila.
Fomos buscar a chave do apartment que uma certa massagista
marcoense negociou por todos nós…
[Um aparte: A senhora aqui
referida é mesmo massagista, daquelas de Hospital e não das outras que põem
anúncios na única parte do jornal que vós ledes. Respeitinho e sabão, seus badalhocos!
Só não lhe chamei ‘endireita’ porque poderia dar azo a interpretações ainda
mais levianas.]
… Ora, a senhoria deu-nos a chave e
umas indicações tão manhosas que nos fez voltar para lhe botar juízo na massa encefálica e querer vir-nos mostrar as instalações comme il faut… mas não – Fez-me um desenho!
Teve, pelo menos, a decência de não desenhar a casa com uma chaminé. Ao fim de
meia-hora a deambular pelo universo campestre courense, achei-me saindo da
viatura, pontapeando seres-vivos. Ajoelhei-me na estrada e, erguendo os braços contra o céu, gritei:
- NOOOOOOOOOOO!!,
E o céu, trovejando como se lhe partissem
a couraça frágil de tartaruga velha e amarelada, retorquiu:
- Quié?
E eu disse:
- Que chova outra vez, caralho! Mas que chova a sério como
nunca choveu em Paredes de Coura, mas diz-me onde fica a puta da casa!!
E o céu disse:
- Tá bem… se é assim que tu
queres! Segues-segues-segues-sempre-a-subir… e quando chegares ao cimo da
estrada viras na primeira entrada à direita.
- Ok, obrigado.
- Na boa – disse ele.
…
Nessa noite fomos para a Vila
porque havia festa de Rancho e, apesar de este não ser do comestível, começou
logo ali a ver-se que o papel das retretes não ia durar muito tempo. As filas para
o WC eram longas e de lá saíam caras de arroto, limpando o suor da testa com
tiras de papel miraculoso.
Cerveja a um euro; malta a
encontrar-se; beijos e abraços felizes; conversas ainda inteligentes e sinceras
trocas de cuspo nas escadas para o adro da igreja; uma amiga 100% cool
prometendo guiar a nossa banheira de imersão assassina. O festival prometia!...
Mas eis que ao fim do primeiro
dia (o da receção ao campista) choveu pa
caralho! Um cenário dantesco:
- Um militar vociferando insultos
contra o céu, querendo rasgá-lo com toda a força dos seus dentes; um agro-freak com laivos de KKK tombando
copos cheios de bebida cara a veraneantes próximos e, pelo meio, uma jurista
respeitável na praça bamboleando uma contagiante dança da chuva que haveria de
comover a face magra das pequenas e chorosas indieas que
em vão se tentavam abrigar nas roulottes
de fast food. Eu vi! Aquilo não era
chuva – eram lágrimas!
No dia seguinte escapuliram-se
várias pessoas cansadas do Golden Shower
de S. Pedro:
O Sr. Do Bigode, cujo
felpo murcho barrava a gourmezisse de
apreciar nacos de tora mergulhada em caldo verde; um tal de Sobrinho que empenhou a tenda para ir ao
Porto comer uma feijoada; A Massagista
e o Angolano que, supostamente, terão
ido ao ‘Poço da Morte’ buscar botas mitradas, galochas e oleados. Rezam porém
as más-línguas que há registos de credit
card em vários motéis… quer no ir, quer no vir… mas vieram! Isto é,
voltaram. E no mesmo dia… mesmo a tempo de tragarem uma bolonhesa tão má que intui em mim certa saudade quando penso
naquelas miseráveis Carbonaras de
pacote que traguei na ‘zona da alimentação’, vendo o Adolfo Luxúria Canibal degustando
um Sushi possível. Honra seja feita,
porém, aos dois casais de festivaleiros que me fizeram companhia quando eu me
encontrava quase a chorar por estar a comer sozinho aquela ração de Auschwitz…
Voltando um pouco atrás…
Nesse dia convidamos os nossos
amigos a vir jantar lá a casa. Espalhamos velas de cheiro para expulsar o
mau-olhado, esfregamos com sedas de Caxemira o melhor faqueiro, e
dispusemos sobre a mesa, não só os copos mais cor-de-pérola que havia no nosso
louceiro como também a mais fina porcelana que se pode encontrar nas lojas mais representativas da dinastia Ming em Portugal.
Os nossos amigos também não se
fizeram rogados…
Um sem-fim de garrafas de fina
craveira. Cevadas e lúpulos de vários períodos, quais delas as primeiras a
sentar na fina grade de papel o seu lugar no mundo como poderosas Afrodites ou Emmanuelle sentada em esteira sedenta de
verguinha… e PREDUTO! – Um soberbo cocktail
que envergonharia a preferência por Martinis
do mais fiel súbdito de Sua Majestade Isabel de Inglaterra…
Os convivas deitavam-se no chão.
Comiam no chão. Esperando que um pouco de animalidade os roubasse do etéreo prazer que lhes roubava o natural curso das sensações terrenas...
Depois dessa volúpia, amigos, inaugurada
com exorcismos castanhos e vista para um bosque de princesas, sabeis tão bem
como eu… o céu escureceu ainda mais e castigou-nos a leviandade. Choveu. Choveu
muito. Choveu como se um tarado tivesse pedido que chovesse ou o S. Pedro
recebesse luvas da organização do Optimus
Alive…
Ainda tentamos ver alguns
concertos (em vão) e cedo a malta bazou. Eu restei. Resignado a uma aventura de chegar a casa pelo próprio pé, sem máquinas de guiar ou outros artifícios. O que a seguir se passou, bem…
Eu envergava calças e casaco de cabedal, botas Doc M., impermeável e, mesmo assim, a chuva entrava-me pelo peito, afogava os meus chatos e desaguava no dique que eram as minhas botas. Lembro-me de as tentar
descalçar numa retrete malcheirosa, com o intuito de despejar aqueles litros de
água (não consegui sequer desapertar os cordões). A partir daí só me lembro da épica viagem
até casa. Ventava muito. Só para vos dar um exemplo: pelo passeio que eu estóica e solitariamente subia, descia um grupo de pessoas que o vento levou para o passeio oposto. Mas não a mim. Eu enrijei-me e aguentei aquelas agruras!
Atravessei a vila como se tivesse
entrado num jogo da estátua (sem
pedir licença) com demónios invisíveis batendo-me nas costas e na cabeça. Na
descida do Intermarché reparei que me
tinham cortado os travões e a minha velocidade aumentou consideravelmente.
Comecei a correr (mais para me livrar dos pesados calduços de Lúcifer), e ao passar por um Subaru ali estacionado, o alarme dele disparou. Convém referir que, por essa
altura, já metade da sola das minhas botas haviam colapsado e o que delas ainda restava era um língua de urticária que arrastava um slurp por cada lambidela no asfalto. Descendo a avenida vertiginosamente, tudo em mim se assemelhava a um camião do gás desgovernado…
Mas eu corria sem conseguir parar. A minha fronte esticava-se para a frente como se estivesse para ganhar
no photo finish a um velocista
olímpico. Já perto de casa, a sola de uma das botas colapsou e eu tombei como um boi sedento. Pus
a mão no chão para me levantar e as veias brilhavam sob a chuva que as molhava.
Rebolei e caí novamente. Busquei na alma e no coração toda a luz que me traz o
amor pelas mulheres e ergui-me em tripé para voltar a andar. Corri depois até
casa como corria o Tom Sawyer quando
se escapava dela e, com uma proeminência que em tudo se assemelha a um Forest Gump a correr para saltar à vara,
cheguei.
Abri, entrei e fechei a porta. Exausto e exaurido, murmurei o sincero grunho dos que um dia se viram ‘Lambidos
pelo Diabo’... para gáudio dos meus companheiros que ali se achavam triturando víveres. Contei-lhes as minhas peripécias, bebi uma mini triunfal e fui deitar-me...
Não me lembro ao certo de tudo o que se
passou nessa noite, até porque no dia seguinte achei duas pílulas no bolso do
meu casaco (true story)...
Foi épico e
Continua...
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