24 de abr. de 2013

Desejo



- Podemos estar ambos errados e, no entanto, as probabilidades jogarem a nosso favor…
- Até porque esta vida são dois dias…
- Exacto, e o Carnaval são três…
- E como é Carnaval…
- Ninguém leva a mal, pois claro!
- Vamos dar outra oportunidade ao nosso casamento?
- Não, vamos só foder pelos velhos tempos...




22 de abr. de 2013

vamos devolver a máquina


tantas foram as fotografias que tirámos com esta máquina
e, agora, algumas, já não as lembramos: tempo a morrer.
outras quisemos esquecer e não executamos o movimento.  

existe uma imagem mais alta do que os telhados,
um ruído que se desprende dos outros e nos toca;
existem sinais por todo o lado, não pretendo olhar,
não olhes também. tenta dormir, sim, tenta dormir.
ensinaram-nos a contar as horas, a ferver a água,
a saltar e a olhar o céu. apontámos a um só avião
e vimo-lo sem querer. talvez nos fosse inevitável.

- dizem que não nos vê lá de cima…

dizem tanta coisa. há quem afirme o nosso sono,
a nossa cegueira, a nossa sorrateira existência.
dizem tanta coisa. por experiência, fugimos,
sabemos não ouvir. mas existe uma imagem,
ela paira sobre os telhados, sobre o nosso sonho.

um gigante de promessas em ferrugem, um rosto,
que se assemelha àquele que tivemos um dia.
se ele nos falasse, creio, não seria razão de receio,
mas ele não se distrai, o seu tempo é outro. agora
somos somente sombras com dores abstractas.
ai!...
mas disseram-me que ele não nos vê lá de cima…

incapazes de destruir o gigante moribundo,
que já só anseia por morrer numa rua qualquer,
escondida das nossas coordenadas, vamos mentindo,
tentamos formatar os risos de outrora, mas o mundo…

o gigante a contorcer-se e assumir-se brinquedo;
o passado a sorrir-nos e dizer-nos que é tarde.
ele tombará sobre o nosso enredo, não há saída.
vamos devolvê-la, agora, antes que se estrague.

a máquina tem de sobreviver, porque a vida…

21 de abr. de 2013

Taxi Driver



O táxi seguia rápido para o meu vagarosismo mental que acelerava. Queria teleportar-me para escrever. Escolhera o banco de trás para não falar, como se guardasse pela vida toda -  uma mochila - segredando aos néons ou segredado por eles uma história de prostitutas…

Tudo fazia sentido, comigo a achar que não havia sentido nenhum… e aquele carro a levar-me para um apartamento onde eu sabia que iria para foder... de boa vontade!
Achando nisso depois decadência nas persianas mal corridas às primeiras frestas de luz com que a manhã lambia o nosso ninho (e a estante dos teus livros)…

Depois até casa, com vigor no caminho, e uma piscina de sensações a esfregar-me com sabão a alma num tanque – a roupa empestada de fumo, de tabaco, de memórias fodíferas… o sol bronzeando a minha errância...
Sorrisos cúmplices, no passeio, com meninas desejosas de tatuagem…

O sorriso delas brinca
E o brinco delas, no umbigo,
Rima comigo…

Passo por nós e por Deus
Enquanto na esplanada brigam os bêbados….




Domingo, depois da explosão e da chuva



Deixa-me pensar em ti
Domingo, depois da explosão e da chuva.

A armadura por polir na cadeira do quarto
Como roupa de sábado à noite

Não sei que te desejo,
Desconheço o teu perfume
Mas há um outdoor teu na minha cidade interior…

Gosto de estar só.
É até ridículo queixar-me do trânsito e dos semáforos
Nas avenidas onde o Apocalipse levou só pessoas.

Quebro todas as regras de sociabilidade
Acelerando um carro roubado ciente de não haver gente para atropelar
Ou clínicos para me desenlaçarem os músculos
Ou apenas repor os ossos no sítio…

Quero lá saber!

Na minha cidade interior as histórias acontecem como nos filmes
E o mundo real é uma cerimónia que
Revisito apenas para dar estrume ao sonho.

Sou podre no mundo real
Mas há uma floresta no submundo dos sonhos
Que subsiste à conta dessa podridão…

Deixa-me pensar em ti
Domingo, depois da explosão e da chuva…

Deixa oferecer-te o cartão dourado
Que abre uma passagem no espelho para o onírico.
Por túneis de sebes floridas
E regos de uma água lacriluminosa que pinga do viço
E das folhas
Ante um circo atrás dos montes…

Escrevo para te dar esse mundo!
Não para viver nele contigo
Mas apenas porque me vou

...E te levo indelével numa memória em flor.




2 de abr. de 2013

sonho transatlântico


o mundo dos significados alinhados e cruzados
é um cigarro mal batido de trago amargo.
o encanto da poesia não o encontro nos prontuários,
nem sequer na melodia que se gera, propaga e repete
na velha caixa de música onde é sempre primavera.

como um quarto sem janelas
ou uma noite desprovida de luar
assaltada de rompante por um sonho transatlântico,
o meu nome diz tão pouco a meu respeito.

a pátria das palavras não é aquela a que pertenço

e quando me olho no espelho,
essa mescla de oráculo e poço,
penso que os deuses se enganaram
se de mim era esperada uma melodia harmoniosa
que ecoasse em flautas e encantasse serpentes.

eu não quero o sublime,
eu não quero o obsceno,
eu não quero o graal perdido,
pois despir-me de mim próprio é a melhor metáfora que consigo.

se eu fosse coisa de ler, seria uma sagrada escritura…
e rogo-te para que não me interpretes de forma literal!
se eu fosse coisa de ser, não seria deus nem criatura,
seria o que sou:
uma praia de inverno que guarda na memória um desembarque,
sem glória nem arte,
de um barco que atracou ao contrário num jeito ultramoderno.